segunda-feira, 13 de abril de 2009

Mudança

Amigos,

A "Velha Margem" agora é "pontonet".

E agora produz textos nocivos e sem sentidos em novo endereço:

http://anivelde.net/velhamargem/




Nos vemos lá?

terça-feira, 31 de março de 2009

quinta-feira, 26 de março de 2009

o trailer

luta de classes



Confesso que fui com uma certa má vontade conferir o "Entre os Muros da Escola", com medo de que o tema - os desafios de um professor em uma escola púbica francesa e diante de uma sala de aula que não o aceita - resvalasse em mais uma aula-lição no estilo "Ao Mestre com Carinho"...aquela coisa toda de que as pessoa se estranham no princípio, rola uma troca de farpas, mas no fim, diante de desafios maiores, todos se entendem, se descobrem e veem que são pessoas e que se amam e blá blá blá. Mas quem resiste à declaração de Sean Penn, presidente do júri que deu a Palma de Ouro em Cannes ao longa de Laurent Cantet, de que ele "tem tudo o que se pode querer de um filme"? E tem.

Primeiro porque assume riscos comuns em um trabalho desse porte, e escapa de erros básicos, que são - sempre - os clichês, as pieguices, os retratos forçados e estereotipados de uma geração.
E porque, ao falar sobre adolescentes, sistema de ensino, desafios do aprendizado, não se propôs, como não o faz, a tentar rabiscar um retrato da realidade, mas sim um recorte de algo que permeia relações humanas comuns em uma situação específica (a França dos imigrantes) e, mesmo assim, universais. E porque não se propõe, sobretudo, a emitir respostas, como refuta o próprio François Bégaudeau, autor do romance homônimo, ator principal e corroteirista do longa.

O filme é sobretudo um mergulho num turbilhão de perguntas, nas quais os próprios personagens estão imersos.

A começar pela brilhante atuação de Bégaudeau como professor de francês de uma turma tão complexa quanto a sua composição (são estudantes malienses, um marroquino, um chinês, uma muçulmana e por aí vai). Esperava que tocasse num ponto nevrálgico: a imigração ilegal, os preconceitos, e o direito dos filhos dos imigrantes de se utilizarem de um sistema público de ensino útil...acertadamente, a questão é deixada de lado, para depois, e apenas permeia uma das situações filmadas.
O que surpreende no filme é não haver vítimas nem algozes; mas diferenças de propostas e, mais que isso, a total ausência de noção do que leva a uma incomunicação entre os polos elementares de uma escola. De um lado, alunos, com trejeitos, rachas, posições e identidades em formação, e dispostos a lutar por algo que não sabem exatamente o que é.
De outro, professores dispostos (sem dúvida) a passar à frente um certo conhecimento, numa missão nobre em si, mas cuja proposta está asfixiada em uma instituição fechada, mais preocupada em vigiar e punir do que em saber exatamente onde todos, no mesmo e exato barco, estão sendo direcionados. Naquele lado, alunos diversos, que gostam de futebol, rap, MTV, e fissurados em iPods, celulares e outras janelas que os mantém distantes e conectados com o mundo. No outro lado, muros, grades, regras defendidas com velhas armas: giz e lousa.
Algo parece não dialogar; é afinal uma intifada de gente armada com paus, pedras e estilingue para combater os super-caças das mudanças que vieram pra ficar.

Por isso, é difícil para o professor aceitar ser questionado o tempo todo por alunos que ele imagina que nunca chegarão a lugar algum. Afinal, são jovens, vulneráveis (os pais podem ser deportados a qualquer momento), insolentes e não se importam com o que realmente importa.
Mas o que, afinal, importa?
O que todos fazem ali, fechados, se o imperativo é a abertura, é o novo? O que explica a ofensa do professor quando a estudante muçulmana pergunta por que, em seus exemplos, os nomes de personagens são americanos (Bill e Bob) e nunca árabes? Ou quando é questionado por que devem aprender o pretérito imperfeito do subjuntivo se aquilo não é usado nas ruas que conhecem em pormenores? (afinal, é pretérito) Por quê?

Em nome de uma missão, vê-se um professor em ponto de explosão quando para para suspirar, olhar, pensar, cerrar punhos e sobrancelhas - é impressionante notar o movimento do maxilar de Bégaudeau cada vez que um novato levanta a mão para tentar saber o porquê de algo. Talvez porque ele mesmo, o professor, não tenha explicação.
Vê-se no filme uma inspiração nítida da ideia de Michel Foucault de que a manifestação do poder, dentro das instituições, como as de ensino, se aplicam após a construção das formas de saber: é a instauração das disciplinas, de formas de controle (de presença, de chamada, de notas, boletins, reuniões com os pais) que permitem criar uma identidade a uma multidão dispersa, separada apenas por gênero e idade. E, ao produzir conhecimento, por meio de fichas, prontuários e históricos, alunos e professores se tornam os mesmos reféns de um mal maior: a instituição disciplinar.
Porque, quando se conhece, é possível identificar desvios; e quando o desvio se torna regra, a saída é se proteger, como o faz Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis em "O Alienista" quando resolve mandar todos para o manicômio (afinal, uma instituição fechada e disciplinar, como a prisão e a escola).

Talvez seja por isso que o professor do filme insista tanto para que cada um fale e produza sobre si mesmo na aula, mas se nega a dar explicações sobre sua vida pessoal - não se sabe quem é, a quê e de onde veio; o que leu e o que o inspirou. É porque, diria Foucault, produção do conhecimento sobre algo é uma forma de ter o controle em mãos.
No filme, o mal maior é apresentado como uma instância denominada "conselho disciplinar". Não se sabe exatamente para que serve, mas vê-se o temor dos alunos de que, ao ultrapassarem a linha do que deles se espera, possam ser levados a tal instância, que definirá os seus destinos - e talvez o de seus pais, ilegalmente instalados naquele país que abriga a todos, mas, ironicamente, não parece oferecer abrigo. As discussões nessa instância, como se vê, não é outra se não ampliar as formas de controle para que a própria instituição se proteja dos arroubos de adolescentes ferozes, dispostos a produzir revoltas em busca de uma única resposta: afinal, o que fazemos aqui?

Felizmente, esse questionamento não é feito com estiletes, revólveres ou ameaças se não verbais. Todos estão a ponto de explodir, mas, em meio à agressividade presente, conservam, do jeito deles, uma confusa mas pura noção de lealdade e orgulho. É o que se manifesta quando Souleymane, o aluno maliense que mal controla seus impulsos, é levado ao famigerado conselho. Está lá para se defender, mas sabe que não tem chance diante de algo criado contra ele. E a mãe, que não fala francês, está ali para defendê-lo, mas, diante da incapacidade de entender do que o filho é acusado, torna-se impotente também para selar qualquer destino.
São símbolos, significados e significantes, distantes de qualquer entendimento, desde palavras simples que os estudantes colocam na lousa por ignorarem o sentido, porque para eles, afinal, aquele uso é que não faz sentido. Assim como a escola, e assim como aqueles professores - cheios de boas intenções mas que, afinal, também parecem não saber o que fazem ali.

segunda-feira, 16 de março de 2009

sobre a via láctea, dinossauros e o fundo do poço


O aparelho de CD de casa pifou há uns bons meses. Nele só é possível, agora, ouvir rádio ou fita K7 (alguém ainda se lembra disso?). Após tentativa frustrada de sintonizar qualquer coisa em qualquer estação, resolvi ressuscitar uma velha fita de rocks antigos que marcaram um período, talvez o início dos anos 2000. Sei disso porque, em meio a uma e outra música que embalava uma folgada manhã em São Paulo, a fita é cortada ao meio e, criminosamente, começa a tocar Djavan, naquele acústico lançado, se não me engano, em 2001, e que vendeu feito água.
Sei que corro o risco de ser chamado de iconoclasta por essas e outras, mas toda vez que escuto Djavan lembro de um amigo que, certo dia, no bar, desenhou uma espécie de ranking da música popular brasileira. E explicou que, em sua avaliação, existiria a música boa, média, ruim e abaixo, bem abaixo, haveria o Djavan.
Achei exagero. Mas, ouvindo o clássico "Se", lembrei de outras peças que me fazem pensar como um cara que entoa "mais fácil aprender japonês em braile do que você decidir se dá ou não" conseguiu gravar com gente da estirpe de Chico Buarque e Beto Guedes _ok, devo dizer que gosto da parceria dele com o Jairzinho e a "Turma do Balão Mágico", em que ele canta "sou feeeeeeeeeeeeliz por isso estou aaaaaaaqui".
Não sou crítico de música nem de cazzo algum, e até reconheço que a voz do cara dá um verniz interessante a letras que, a princípio, parecem embalar bons sentimentos. Mas é só tirar a voz e pensar no que estamos cantando e logo temos a impressão de que estamos lendo mensagens em paredes de banheiro mal envernizadas. Exemplos:"Tudo que Deus criou pensando em você. Fez a via láctea, fez os dinossauros..." (esse mesmo amigo do bar disse ter perdido dias de sua vida imaginando Deus olhando carinhosamente para um Tiranossauro-Rex e se inspirando pra criar uma, digamos, Dercy Gonçalves)
ou
"São Jorge, por favor, me empresta o dragão"...
ou "Insiste em zero a zero, eu quero um a um".
ou o "Te devoraria tal Caetano a Leonardo DiCaprio".Sem contar o final daquela música, insuportável, "Lilás": "Eu quero ver o pôr do sol lindo como ele só, e gente pra ver e viajar no seu mar de raio raio raio raio".
Nossa, como é ruim. Se alguém tiver estômago, espere só o final da música e conte quantas vezes ele repete isso, tentando nos ganhar.
Mas voltando ao dragão, lembro quando descobri na internet um funk pesadão, daqueles proibidões, que dizia o seguinte:
"A Chatuba come cu e depois come xereca, ranca cabaço, é o bonde dos careca / Máquina de sexo, eu transiguanimal, a Chatuba de Mesquita no bonde sekisoanal (sic) / Moleque playboy, funkeiro sekisoanal (sic), a Chatuba de Mesquita come a mina de Geral".
Até aí, podemos pensar que a música chegou ao fundo do poço. É o que todo mundo pensa e diz mesmo. Quero ver alguém dizer que o fundo do poço já tinha sido cavado pelo Djavan antes. Quer ver? Basta dizer que, no funk, há uma expressão crítica de um grupo oprimido e sem perspectivas de ser agraciado no fim do ano com uma bolsa no Prouni e resolve reafirmar sua identidade por meio da música, enquanto homem que vê na conquista da relação sexual (no caso, com as mulheres do grupo rival, de Vigário Geral) a moeda que lhe permite reivindicar uma autoridade e o controle de uma área adversária notadamente dominada pelo tráfico, pela luxuria e pela violência. Viu só: a música começa com cu, e termina com a realidade da juventude transviada expressa em letra, música e putaria.
Mas e o dragão? Que caralhos o Djavan queria com o dragão?
Meu amigo do bar pode até ter exagerado. Mas eu ainda fico com a Chatuba.

sexta-feira, 6 de março de 2009

lembranças do seu Armando




Fiz esse texto em meados de março de 2007, quando nosso amigo Armando, o andarilho que passava de bar em bar de São Paulo vendendo os bonequinhos confeccionados pela esposa, morreu após sofrer infarto no meio da rua. Na última terça-feira, estava no bar que frequento há pelo menos cinco anos, e começamos a lembrar dele. Exatamente na última mesa onde tive com ele minha última conversa _e comprei meu último boneco da coleção mal iniciada. O texto nunca me serviu pra nada; nunca foi publicado, nem em papel, nem na internet. Lembrando da história, deu vontade de usar esse espaço para render minha última, e retardada, homenagem ao sujeito que deixava o fim das noites mais poéticas no duro concreto da Paulista...


Segue:







Seu Armando saiu de casa sem a bicicleta na noite de quarta-feira. A pedido da esposa, pegou o ônibus na Vila Cachoeirinha, zona norte de São Paulo, porque andava cansado para pedalar.
Como toda noite, seguiu para a avenida Paulista, onde havia pelo menos 35 anos iniciava sua ronda noturna por bares da chamada "Prainha", na Joaquim Eugênio de Lima.
Andava animado porque encontrara naquele dia um antigo amigo que vive na Europa e, de férias no Brasil, havia encomendado toda a coleção de bonecos de pano, confeccionados por sua esposa, que Armando vendia pelos bares da Paulista e da Vila Madalena de domingo a domingo. Depois de se encontrar com o amigo, almoçou com os filhos, descansou e, antes de sair de casa, repetiu a pergunta feita todas as noites à esposa, Vera: "quer que traga alguma coisa da rua?"
A rua era a segunda casa de seu Armando. Com os cabelos compridos, brancos de certa idade e presos só por uma fita elástica, trotava de bar em bar com a magreza peculiar tentando vencer a rabugices de boêmios que se mostravam incomodados com suas ofertas. Àquela altura, não demonstrava receio para interromper conversas em mesas já emporcalhadas de cerveja e embriaguez. Não podia ver alguém triste que já puxava papo: queria saber dos nomes, das profissões, das rotinas. Às vezes até se esquecia dos bonecos.
Aos 62 anos, Armando Rafael Colacioppo tinha jeito pra palhaço, mas dizia mesmo ser o último socialista de São Paulo. Paulistano _nasceu e cresceu na rua Barata Ribeiro_ e engenheiro naval formado pela USP, queria ter na vida apenas duas camisetas. Uma para usar e outra para lavar.
Em uma espécie de troncha levada como sacola, carregava pelas ruas bonecos que ficaram tão famosos quanto os bares que frequentava_o Marciano Tarado, o Zé Celsinho, o Inconsciente Coletivo. Vendia por noite 30 bonecos, a R$ 5 cada _se o cliente chorasse, levava até por R$ 2.
Da região da Paulista, seguia, a pé ou de bicicleta, até a Vila Madalena. E, antes de voltar para casa, comprava, a pedido da mulher, alguma encomenda, geralmente fruta ou iogurte. Tentava convencê-la a parar de fumar.
Brincava com Vera que, agora que os filhos, os publicitários Márcio e Roberto Colacioppo, haviam casado, estava livre para fazer a revolução ao lado dela.
Queria viver como hippie e, segundo a mulher, quase conseguiu.
Na última semana, no último trecho de sua última caminhada, no Bar Filial, na Vila Madalena, encontrou-se pela última vez com velhos amigos da noite _hoje quase todos avôs.
Mas Armando, antes mesmo de começar a revolução, resolveu não voltar pra casa. Às 6h20, entrou no hospital na Vila Cachoeirinha porque não se sentia bem.
E caminhou até o corredor, à espera de um atendimento para o qual não havia tempo. Um infarto do miocárdio interrompeu a caminhada. Em sua última passada, esta mais larga, Armando estava junto de seus bonecos e da velha camiseta. Pronto para a última caminhada.

terça-feira, 3 de março de 2009

perdão inacabado


Rachel é a mulher perfeita prestes a realizar um sonho e a lavar a alma de uma família rachada e em reconstrução. Está grávida, ama e é amada, e vive o melhor momento da carreira. Lotou a casa de amigos para sua festa de casamento alternativa; apaixonou-se por um músico havaiano, adorado pelos amigos e orgulho dos pais e da irmã, e é recebida de braços abertos pela nova família. Faz tudo certo, e por isso faz com que tudo saia como o planejado, assim como fez durante toda a vida. Mas é Kim, a irmã rebelde viciada em drogas e pivô do racha familiar, interpretada Anne Hathaway, quem toma as atenções em "O Casamento de Rachel".


Curiosamente, é exatamente o fato de estar à margem em uma festa que não foi feita por ela, para ela e sobre ela, que a desola durante o filme.


A irmã, perfeita, é o centro das atenções, o alvo de discursos e músicas feitas pelos amigos em uma homenagem graciosa, que parece não ter fim. A cada brinde, uma dor exposta à irmã, que recebe uma espécie de licença na clínica de reabilitação para acompanhar a festa. A ela cabe apenas observar, como coadjuvante, a consagração de alguém que fez tudo certo toda a vida.


As nuances, as competições e provocações, as rebeldias no comportamento de alguém que parece disposta a deixar uma vida de desleixos e dor, são ingredientes que fazem deste filme de Jonathan Demme uma das melhores opções em cartaz hoje em São Paulo. Mas são apenas o pano de fundo de algo que se revela por meio de uma busca que se expõe, e se sobrepõe, sobre qualquer mentira sobre perdões, felicidades e planos futuros; o trauma é a base de uma família que se salvou da destruição, mas não das mudanças; e faz com que a tragédia se instale na eternidade.


Quando jovem e viciada, Kim foi incumbida de passar uma tarde com o irmão caçula, Ethan. Sob efeito de drogas, envolve-se em um acidente de carro, que vai parar em um lago profundo sob uma ponte, de onde não consegue soltá-lo; preso ao cinto de segurança, Ethan não sobrevive.


Não estará vivo na festa do casamento da irmã mais velha.


A morte do filho mais jovem parece um fantasma a penar pela casa; com ele, a certaza de que o perdão pode ser anunciado e até jurado, mas nunca aceito. Vai ser revisto toda a vida, e toda vez que aparece pode causar novas fissuras.


A mais dolorosa delas é quando a mãe das meninas se demora em um abraço longo na filha que é noiva e é, ela toda, vida, enquanto Kim, bem ao lado daquela consagração, recebe apenas um beijo na face, rápido e custoso, de quem não a suporta. Essa certeza, e a sensação de não ser suportada em um ambiente confrontado com o passado mesmo nos momentos mais alegres, são a sina de quem queria mergulhar numa experiência de sabores e sensações, como qualquer jovem, mas na vida recebeu apenas a missão de ser estorvo.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

desapaixone-se


Com uma toalha segurando os cabelos e os pés apoiados na janela, Holly (Audrey Hepburn) rabisca algumas notas no violão enquanto Paul (George Peppard), postado num andar superior do mesmo prédio, a observa sem piscar. A música, “Moon River”, progride e a cada acorde a câmera se aproxima dela, até ser focada de vez em seu rosto. Justamente no trecho que diz: “There’s such a lot of world to see”. Paul está apaixonado. Todos estamos.
Só não sabemos qual parte do mundo coube aos dois ao fim de “Bonequinha de Luxo”.
Nem podemos imaginar que fim teriam Jack e Rose se o personagem interpretado por Leonardo DiCaprio não tivesse escorregado daquele bloco de gelo, soltando para sempre as mãos de Rose (Kate Winslet). A distância num caso e a morte, no outro, mantiveram conservados para sempre os suspiros de amores contraditos dos principiantes.
Mesma sorte não tiveram Frank e April, vividos pelos mesmíssmos DiCaprio e Winslet no novo filme de Sam Mendes, baseado no romance de Richard Yates, “Revolutionary Road”, toscamente traduzido no Brasil como “Foi Apenas um Sonho”.
Sorte que parecia consumada, pois aquele mesmo “tanto mundo” cantado por Hepburn estava disponível ao jovem e belo casal nos Estados Unidos do pós-guerra. Tinham a vida e o mundo pela frente, algumas sobras de suspiros, uma beleza ainda intacta, dois belos filhos, além de uma linda casa branca – com varanda, um quintal e várias janelas para ver o sol nascer, como na música. Sol que está presente o tempo todo durante o filme, iluminando cada canto de uma casa típica da família doriana. Aquela vida branca, clara e bela, é um inferno. Ele é chucro e, para ela, um sujeito covarde, pouco interessante e incapaz de aceitar mudanças; ela, sonhadora, é uma atriz frustrada, sem talento para o palco ou para mãe e dona do lar. Os personagens são personagens desencontrados, num palco para eles desconhecido, interpretando uma peça que desprezam.
Nas mais de duas horas de filme, o que se vê é a tensão existente entre dois jovens que veem o mundo cantado por Hepburn se perder das mãos. Descobrem que aquela vida é uma farsa encenada para agradar os pais e os vizinhos solícitos e aparentemente felizes, com quem mantêm conversas bestas sobre assuntos detestáveis. Ambos parecem não só terem notado viverem uma alegria falsa; notam, sobretudo, que a felicidade não existe em meio àquele “vazio sem esperança”, branco como o branco, a mistura de todas as cores fundidas e...invisíveis.
Esse vazio é apontado pelo único personagem que tem coragem de enlouquecer e assumir que enlouqueceu – o filho de uns vizinhos, recém-saído do hospício. Detestável, como a verdade.
Assim como em “Beleza Americana”, do mesmo diretor, esse “vazio sem esperança” do modo de vida que escolhemos é também posto em xeque. A pergunta: o que fazer depois do triunfo?
Na vida, somos treinados o tempo todo para os grandes momentos, e não os pequenos. Ouvimos histórias sobre triunfos da coragem, sobre a necessidade de sermos homens, realizados, alegres, dispostos, honestos, trabalhadores; bons amantes, bons pais, bons vizinhos. Somos criados para vencer, superar a escola, a carreira.
Mas o filme parece dizer que nem sempre temos vocação para esse mundo que nos é imposto como um desafio; porque sabemos atravessar desertos, mas não sabemos como agir após a travessia.
Ao notar que a alegria e a paz prometidas para após o desafio – juntar os trapos, ter uma casa e os filhos – April e Frank são incitados agora não apenas pelo tédio, mas pela própria noção de incapacidade. Essa incapacidade, representada no filme como a ausência de talento e sensibilidade que angustia o mesmo casal, sem esperanças se não à de fugir para outro mundo (Paris?). É justamente o que os leva à destruição.
Em momento-chave, Frank, que já lutara na guerra, confessa, bêbado, que sentia falta das frentes de batalha, dos conflitos, da guerra, e até de sentir medo. Porque, diante do perigo, sentia o sangue correr pelas veias. Sabia que estava vivo.
Mas os tempos, Frank, agora são de paz, e mesmo sendo treinados para sermos heróis, temos que nos acostumar com os esforços para nos contentar com as comodidades da geladeira. Ou do quintal. Ou da casa branca de madeira nobre. Ou da competiçãozinha fétida com o vizinho de grama mais verde ao lado. Das escapadas num sábado à noite. Dos olhares da colega de trabalho. Da promoção no trabalho que nos esmaga. Da praia, suja e lotada no fim de semana. Da embriaguez. Das conversas tontas de quem sonha apenas em levantar, cumprir o que nos foi determinado, dormir, e esperar morrer. Enquanto a TV nos distrai.
Em “As Benevolentes”, Max Aue, o agente da SS que narra sua versão da segunda guerra, afirma que a vida parece ser feita por quem já descobriu que ela é uma farsa, e, cinicamente, não se importa com isso; por quem ainda não descobriu que é uma farsa, e se aliena nas pequenas e pueris alegrias; e por quem, como Jack e April, já sacou que o tédio triunfa, mas sofre com isso e busca respostas.
E por sofrerem, e por sermos criados para vencer, lutar, e ir à frente, é que, sem objetivos, nos distraímos, como Jack e April, com os passatempos favoritos da nossa geração: destruir quem está ao nosso lado.
Em minha vida, cansei de ver meus tios, casais de amigos, pais de amigos e até meus próprios pais se humilharem, entre eles mesmos, ou diante do mundo, para saber quem pode mais. Como se o sonho de ser tornar astronauta tivesse sido abortado em nome de um dever que nos foi delegado: cuidar dos filhos, da casa, do sustento. Sabem que, fora a casa, não foram capazes de construir nada, absolutamente nada, juntos. Capazes foram somente de cuspir méritos, à espera de um reconhecimento que não virá, e minar o que o outro tem de melhor, com o intuito de não o perder para o resto do mundo.
Ganância, ciúmes, cobranças; indiferença, desencanto, desprezo. A alegria de desautorizar e se vingar por aquela viagem negada naquele verão. Ou porque as coisas, ao lado de mais alguém, jamais vão sair exatamente como imaginamos no começo.
Pois é. O filme é uma patada no estomago, e saí dele direto para o bar, para murmurar sozinho. Meu estomago ainda doía. Diante do argumento exposto a mim naquele filme: sim, sabemos vencer o inimigo, mas não nos comportar em tempos de paz.
Por isso, seguimos guerreando, pois se por um lado não há mais causas, por outro, as armas ainda existem e estão ao alcance. São usadas para nosso esporte favorito: enlouquecer e levar à loucura não o inimigo, mas aqueles que aceitaram viver perto de nós. Supostamente para toda a vida.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

...ou NDA?



Pena. Poucos filmes que assisti frustraram tanto minhas expectativas como
“Slumdog Millionaire”, já cultuado longa de Danny Boyle e, como dizem, favoritíssimo para levar o Oscar.
Não que seja ruim. Mas fui a ele numa sexta à noite, quase madruguenta, após baixar o arquivo no computador – o filme só chega no Brasil depois da premiação – como se fosse ao encontro de algo que mudaria para sempre minhas concepções mais arraigadas...Deveria ter juntado uma graninha a mais e viajado para o Taj Mahal para isso, como fez minha amiga Roberta Tasselli.
O filme, traduzido no Brasil como “Quem Quer Ser um Milionário?” conta a história de Jamal Malik, garoto indiano que participa de uma espécie de “Show de Milhão” de seu país. Tirem o Silvio Santos do palco e coloquem o menino diante de um cover do Afanasio Jazadji, cover de deputado e radialista paulista, que só ri e zoa os cara quando alguma câmera é ligada. Fora de lá, é um calhorda, arrogante, disposto a espetar o convidado cada vez que lembra que o menino nasceu na favela e hoje não passa de um assistente de telemarketing. Isso já é metade do filme.
Repito: pena. Porque a proposta, mal executada, parece ser genial: mostrar como um menino pobre, órfão desde cedo, perdido no emaranhado das ruas e entulhos das favelas da gigante Mumbai (antiga Bombaim e futura maior cidade do planeta), consegue ter todas as respostas para todas as alternativas que lhe são dirigidas ao longo do filme, tanto pelo apresentador do programa como pelos personagens às sua caça pelas ruas. Como se os caminhos não tivessem uma resposta certa, mas quatro alternativas erradas, das quais nos livramos ao nos desviar delas pela lógica ou por eliminação.
O que conduz Jamal, parece dizer o diretor, não é o que o programa oferece. Ele parece saber da espetacularização da miséria ou do desafio que supostamente propõem seus idealizadores na TV _dar uma chance a um jovem condenado às mazelas da pobreza a oportunidade de ficar rico e se tornar, enfim, gente. Algo bem parecido com o que vemos com as casas, carros e reformas oferecidos para quem se dispõe a se rebolar pelado em cima de um tambor de óleo para elevar o traço de audiência em programas de auditório por essas paragens.
O que conduz Jamal e o ensina não é o preparo para o desafio na TV, mas a própria rua, a vivência, que se apresenta e o leva a emitir as respostas certas. Jamal parece saber que dar a alternativa correta diante das perguntas que podem mudar o rumo de nossas vidas não é questão de estudo, preparo, raciocínio nem exclusão; para Jamal basta recorrer à memória. Ele não tem, como se verá, as respostas de todas as perguntas, mas apenas para as perguntas que lhe são apresentadas. É o que precisa saber. Porque as perguntas, lançadas a ele como bombardeios, já foram respondidas, e foram os próprios desafios de sua juventude esmagada, fugitiva, sobretudo de desencontros e trapaças, que o faz responder qual é o nome do presidente impresso na nota de cem dólares ou o lema na bandeira indiana.
Ao fundo, Boyle parece dizer: malandro que é malandro não sabe a resposta, mas desvia de erros e não se deixa enganar nem confiar. Nem mesmo no próprio irmão.
No país das crenças, em mitos, deuses e agora nos homens que conduzem um país em expansão econômica, é o pé atrás, não a fé, que orienta cada passo do desafiado. É o que Jamal parece levar em conta, no momento mais instigante do filme, quando o próprio apresentador – o Jazadji cover – se mostra confiável para lhe empregar a peça – uma das tantas que o rapaz aprendeu a driblar desde cedo.
Curiosamente, são as respostas, e não as perguntas, que levam Jamal a ter de responder, por sua vez, por seus atos, numa delegacia, para esclarecer aquele dom, visto, não pelos milhões de expectadores que nele veem a salvação, mas pelos próprios produtores daquela farsa na TV, como uma fraude. Portanto, caso de polícia. Talvez uma crítica indireta desenhada pelo diretor para mostrar o quanto aquela Índia, que produz e cria as suas crianças em condições subumanas de desenvolvimento, parece, ela mesma, desacreditar que daquele meio seja possível emergir algo limpo e esclarecedor.
As respostas sobre as respostas, ditas por meio de um interrogatório na delegacia antes mesmo do desafio final, é o que liga o filme à infância de Jamal. Bem como Sherazade, o autor das histórias – dessa vez reais – garante não novas 1.001 noites de vida, mas o crédito da plausividade. A plausividade do absurdo, que começa ao nascer, ao crescer e ao ser desafiado com questões em um mundo povoado de trapaças, como os milhões oferecidos naquele show como numa alegoria.
Mas não são os milhões de rúpias que levam Jamal ao programa. O que o leva até ali é a única coisa que parece ter sentido para ele, e que é capaz de tirá-lo do sério toda vez que lhe é tomada das mãos: o coração. Aargh...Dá revertério só de escrever isso.
Pois é aí que o filme perde a mão: ao colocar como pano de fundo uma história de amor desencontrada, Boyle parece disposto a encenar um conto de fadas, capaz de fazer refletir, mas também de agradar ao público, todos os públicos, exatamente como o fazem os shows de auditório que tão bem conhecemos.
Sem contar as músicas, péssimas, que tocam do nada a cada cinco minutos, toda vez que os atores se pegam a correr – sim, outra baixa do longa: todo mundo corre de tudo e de todos, menos de seus estereótipos.
Não fosse essa solução dada aos questionamentos que o filme se propõe, o longa fatalmente entraria no topo da minha preferência para a premiação de logo mais. Mas, pela confusão e pelo clichê, pelo sentimentalismo ingênuo e esperançoso, fica guardado como decepção. Mantenho meu voto em “Milk”.
Parêntesis. Uma coisa deve ser dita. A atuação dos moleques indianos, em um cenário indiano, no meio de uma produção como cara, sotaque e natureza britânica, é imperdível. De se tirar o chapéu.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

em 96 também...

Só pra matar saudade...

o ano que não terminou



Wanderley Luxemburgo pode queimar a língua, mas parece convicto de que esse time que está levando a campo no início da temporada é bem parecido com a sua equipe de 1996. Para quem não se lembra, o Palmeiras daquele tempo, também comandado por ele, atropelou o que encontrou pela frente, foi quase campeão paulista invicto (sofreu uma só derrota, para o Guarani) e chegou à marca de cem gols em um único torneio. Pintou, bordou e morreu jovem, quando Müller, pivô do time e em sua melhor fase, se transferiu para o São Paulo na metade da temporada - sem disputar a final da Copa do Brasil, na qual o time foi derrotado para o Cruzeiro.
É cedo, ninguém ganhou ou provou nada, mas é difícil não ir na onda de Luxemburgo, principalmente depois dos 4 x 1 sobre o Santos no último fim de semana. Problemas, sorte e erros de arbitragem à parte, o time, assim como o de 96, tinha fama de bater em galinha morta e de que não aguentaria o tranco quando visse equipe grande pela frente; todos diziam que não manteria o ritmo quando enfrentasse um time grande de verdade, e que bater na Ferroviária e Novorizontino, os Mogi Mirim e Marília da época, era missão inglória, mas fácil. Diziam que bater no Corinthians de Edmundo, craque recém-contratado pelo Alvinegro, em quem foi depositada toda a esperança da segunda maior torcida do Brasil para jogar ao lado de Marcelinho, seria bem mais difícil. É o que dizem do encontro marcado com o Corinthians de Ronaldo e Dentinho de hoje.
O Palmeiras de 96 era novo, jovem, com nomes desconhecidos...mas depois dele, todo mundo quis ser o Palmeiras de 96 quando crescesse. Houve, desde então, times bem mais vitoriosos (aquele mal durou um conto de fim de verão), mas nenhum encantou tantos em tão pouco tempo.
Este blog tem como nome "Margem de Erro", e o que se escreve aqui não tem a menor pretensão de se comprovar mais à frente. Vou de braçada na memória, ainda encantada com aquele time de 96, com o risco de errar e me lembrar mal de episódios e situações; mas não vou resistir a fazer a comparação entre o que foi, o que é e o que pode acontecer com esse time que ameaça encantar. Se der com os burros n’água, ainda posso dizer que não sou treinador do time, só um iludido abobalhado com um chutezinho fora da área que acertou o ângulo de um time boliviano. É porque ainda acho que a história se repete, nem sempre como tragédia, quase nunca como farsa. Aos tópicos:
-o goleiro titular daquele tempo, Velloso, tinha um jovem e promissor arqueiro em sua cola no banco de reservas, chamado Marcos. Titular absoluto de hoje, Marcos, assim como Velloso naquela época, teve de deixar a meta por contusão e deu chance para Bruno mostrar serviço debaixo das traves. E Bruno, como Marcos, tem dado conta do recado;
-os zagueiros (Danilo e Mauricio Ramos) são novos, desconhecidos, um deles vindo do Sul (como Sandro Brum), e vieram para se juntar a um defensor experiente e que subia à área e marcava gols com certa frequencia...alguma semelhança entre Edmílson e o Clebão?;
-o lateral-esquerdo é novo, baixinho, negro, dribla pelo meio, cai pela ponta e ainda precisa aprender a cruzar a bola na área. Assim como Junior em 96, Armero chega como titular absoluto na ala, apesar do bom trabalho feito pelo lateral reserva no ano anterior, Wagner - que, assim como Jefferson, fez apenas um, mas importante gol, com a camisa do time;
-o cabeça-de-área de hoje, Pierre, sagrou-se ídolo no ano anterior, não pela técnica, mas pela capacidade de correr, marcar e roubar bola...só que o Amaral, em 96, já tinha vaga cativa na seleção;
-o meia de apoio, recém-contratado, é dado como promessa, foi destaque na equipe antiga, chega à área com facilidade para chutes de longa distância e pode desequilibrar na bola parada. Cleiton Xavier não tem a mesma habilidade, nem é canhoto, como Djalminha, mas assumiu o posto de maestro do time e, como o ex-craque, marcou seu primeiro gol logo em sua primeira partida pela equipe;
-o meia-atacante é jovem, promissor, e quase completo: chuta de longa distancia, com os dois pés; cabeceia bem, tem bom passe, dribla como poucos, mas vem de temporada mediana, sendo criticado por prender demais a bola e demonstrar lentidão e certa preguiça em campo. Mas poucos duvidam que, inteiro e ligado, é a grande estrela da equipe. Rivaldo só deixou de ser o Diego Souza de sua época em 96, quando fez miséria, pintou, bordou e entrou de vez no rol das grandes estrelas do futebol nacional de sua época como líder daquele time;
-o jovem atacante recém-contratado brilhou no Brasileiro do ano anterior vestindo a camisa de um time verde. Chuta com os dois pés, gosta de bater pênalti, faz as vezes de pivô, cabeceia bem e gosta de buscar a bola no meio-de-campo. Assim como Luizão, Keirrison também vestiu a camisa com apenas 20 anos, marcou dois gols logo em seu primeiro jogo e, também com a 9, desponta como favorito a ser artilheiro por onde passa;
-assim como a equipe de 96, o Palmeiras deste ano também tem um meia chamado Marquinhos, que se destacou em um time rubro-negro; é um habilidoso meia-quase-ponta, que chega para ser titular, se machuca, e fica sem lugar entre os 11, ao menos no começo da temporada...só que o Marquinhos de hoje veio do Vitória, e o de ontem, do Flamengo;
-aliás, neste ano o time trouxe duas revelações vindas do Vitória: Willians e o já citado Marquinhos. Em 96, contava com Paulo Isidoro e Alex Alves, também ex-Vitória
-em 96, a torcida adorava quando o Elivelton, 12º jogador do time, entrava em campo. Sempre deixava sua marca. E os olhos da torcida brilham hoje com seu 12º jogador, também artilheiro-quebra-galho, Lenny;
-o mesmo treinador, Luxemburgo, havia assumido o time um ano antes da temporada de 96, com a missão de colocar o time nos trilhos após passagens fracassadas de técnicos que não traduziram bons elencos em títulos (Caio Jr. de ontem, Carlos Alberto Silva de anteontem);
-Galeano, mesmo reserva, tinha a confiança do treinador, assim como Jumar, bombeiro dos pontapés nas horas vagas;
Ok. Falta um Cafu na direita, e um Müller, no auge de sua experiência, no ataque. E Sandro Silva começou bem, mas ainda está longe de ser um Flávio Conceição.
E faltam muitos jogos, muitas coisas, muitos testes.
A comparação pode ser fajuta, esperançosa, talvez embotada por sete boas apresentações. Mas só de lembrar daquele time de 96, dá até vontade de ser palmeirense e gostar de futebol...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"Milk" e a política nossa de cada dia


Os Estados Unidos de Harvey Milk já conheciam os Beatles, os hippies e o LSD. Já era a democracia mais antiga do planeta, um fenômeno de produção industrial, tecnológica e de conhecimento. Um abrigo imenso, e ainda novo, cuja constituição, a primeira e fundadora, garantia havia décadas a liberdade e espaço para tudo e para todos. Mas os Estados Unidos de Harvey Milk era também o país que punha a polícia na rua para bater em nome da ordem; que temia e decretava o fim dos espaços, festas e redutos gays onde quer que fossem instalados. Redutos que, no início dos anos 1970, passam a migrar para a costa oeste americana, seguindo para San Francisco, na Califórnia, para onde homossexuais de todo país se mudaram naquela época em busca de refúgio e liberdade. Refúgio que incomoda, provoca; cria um país dentro de outro país, e que, para os puristas, não deve ser só combatido, mas eliminado.
Mergulhado no livro que simula o relato de um oficial nazista durante a 2ª Guerra, tenho me questionado, nos últimos dias, até que ponto a ameaça de arroubos nacional-socialistas, transcritos na "solução final" contra judeus, ciganos, deficientes e homossexuais, está completamente afastada em nossos dias; e o que chama a atenção em "Milk", do cada vez mais genial Gus Van Sant, é que não estamos na Alemanha dos anos 1930, mas na libertária Califórnia dos 70, bem parecida com a avenida Paulista de nossos dias.
Nessa mesma Califórnia, o alicerce do movimento gay não é só a aceitação, mas a própria sobrevivência humana. É uma Califórnia que também reprime, mas uma Califórnia que permite, em contrapartida, a formação de um germen contido em um movimento de bar, de rua, de bairro, de cidade; para pouco depois se tornar uma questão nacional. Na melhor interpretação que pude conferir até aqui de Sean Penn (esqueça o sujeito da jaqueta, sério, com cara de poucos amigos, como quem acaba de surrar a Madona pela 19ª vez), o ator vive o ativista gay que, brokebackmontainhisticamente, larga sua vida de executivo em Nova Iorque e segue o uivo dos mares do oeste, onde viver com o namorado era aceito em determinadas condições de pressão e temperatura.
Apesar do pano de fundo, o filme é sobretudo político. Milk não é um ativista gay fazendo política, mas um político levando o ativismo para o debate, o espaço público em uma democracia - mal e mal - consolidada. É por esse canal que ele se insere, num plano em busca da hegemonia do campo, como apregoava Antonio Gramsci. É fazendo aliança, agregando apoios, barganhas, destrinchando projetos que, apesar de se tratar de uma questão universal, ganha força por meio de demandas e representações locais. Só assim para se mudar o mundo, a história, e o modo de se ver, agir e sentir, sem a culpa ancorada na velha formação da moral cristã americana.
Mas é por essa mesma via que seres instalados na vida pública tentam viabilizar um projeto segundo o qual homossexuais perderiam parte de seus direitos civis; passariam a ser tratados como doentes. Por esse projeto, professores homossexuais deveriam ser expurgados das escolas, para evitar o "contágio" dos mais novos, em nome da família, amém. Isso no meio dos EUA dos anos 70, os mesmos EUA de Woodstock e Andy Warhol. O argumento deles: "pode se discutir com os homens, mas não com Deus; e o que quer de nós Deus se não a procriação?" Logo, diziam, a homossexualidade é um tiro de escopeta no alicerce familiar.
Do outro lado da batalha, Milk tenta mostrar que, nesse caso, a individualidade, ao lado da moralidade, é o inimigo a ser combatido. Sua luta, como dito, não é pela aceitação nem pelo apoio meramente, mas, como dito, para sua própria sobrevivência. Para isso, não pode falar apenas com a comunidade que diz representar, mas com o mundo. E o mundo, defende ele, precisa saber quem são as vítimas da maior das atrocidades dos nossos tempos. Não é uma comunidade isolada e distante, mas nossos filhos, amigos, irmãos, conhecidos, vizinhos. Daí o seu jargão: "Eu vim recrutar vocês". E a ordem, enfim: "Saiam do armário. Seus pais e amigos precisam saber quem são vocês". A lógica é: "se as pessoas nos amam, nos aceitam; e não aceitariam a violência contra nós. Um voto, nesse caso, passa a ser pelo menos dois". Touche.
Passados mais de 30 anos do início daquele burburinho californiano, é de fato louvável que esse movimento tenha respingado em nosso país, em nossa maior cidade, e em várias partes do planeta; hoje, a Parada Gay é o maior evento cultural paulistano _e está fadado a morrer politicamente quem se opuser à ideia de tratá-la como patrimônio e monumento cultural. De fato, as questões estão colocadas na vida pública, embora certamente mal resolvidas e só parcialmente alcançadas. Aqui e ali, os desmandos, as desautorizações, os assassinatos e perseguições étnicas e culturais sobrevivem. O jogador de futebol não pode se assumir porque há uma faca em seu pescoço, faca colocada pelo presidente do seu clube e até mesmo pelo juiz de sua causa. Assassinatos diários. Declarações lamentáveis a rodo. Motivos de piada e deslegitimação. As lutas contra a união homoafetiva, contra os procedimentos legais _justos, dignos_ os impedimentos às passeatas, as pressões, a violência implícita.
Quando criança, viajava nas minhas férias para uma cidade chamada Ibirá (SP), onde moram até hoje meus tios e avós; lá, minha mãe era atendida numa loja por um rapaz, de seus vinte e poucos anos, gay assumido, em roupas e expressões; enquanto tentava trabalhar, ouvia gritos, piadas e insultos das crianças que saíam da escola rumo às suas casas. Disseram-me, um dia, que o rapaz já não ligava para aquelas manifestações; sua tristeza mesmo era que o irmão, mecânico, não falava com ele, por vergonha, desde que resolvera se assumir.
Em momento emblemático do filme, é Harven Milk quem diz a um rival político, que se tornará o seu algoz fatal, que havia se relacionado com quatro homens durante toda a sua vida; todos eles com tendências suicidas. Num país em que não se tem espaço, aceitação, direito; em que ainda dão voz aos tais representantes da família e da moral, que querem apontar, à força, um único caminho, um único modo de ver, amar e sentir, o melhor caminho de fato seria a morte, não fosse a política (a tão desacreditada política).
Debates, manifestações, projetos de lei, defesa de direitos humanos como pano de fundo. O conflito precede a conquista, tanto no filme como na história real - e nesse ponto o filme de Sant parece ser o mais engajado da sua obra.
Baseado em uma história real, triste e tragicamente real, mostra em detalhes os caminhos para a mudança dos hábitos, para muito além de qualquer revolução: a política nossa de cada dia.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

por onde andava Stephen Fry?





Estava lá. No elevador. O tempo todo. Só o Baleiro, que não tem twitter, não sabia.

minha vida como indigente


Poucas coisas mudaram na minha vida desde outubro de 2000. A conclusão veio num sobressalto, num domingo de manhã, quando, depois de jogar minha bolinha, tomar duas cervejas com meus amigos Reinaldo Haddad (o Turco) e Marcelo Puyol, me dirigi para a portaria do clube para esperar minha carona. Tudo bem que, em outubro de 2000, não bebia, não conhecia os dois amigos citados e ainda era sócio do clube onde pago, todo domingo, para poder entrar e me reunir com amigos e rabiscar algo parecido com o que chamam de futebol. Mas, assim como naquele ano, quando completei 18 anos, e de maneira parecida com os 18 anos anteriores àquela data, tive de me sentar num meio fio de calçada, sob sol escaldante, para esperar meu pai me buscar em frente do clube. Não tinha alma que não passasse por mim e não tivesse vontade de me oferecer uns trocados diante do meu abandono, mas era a forma que eu tinha de evitar algo em torno de duas e horas e meia de caminhada até o lugar onde meus pais moram atualmente, onde fico durante os finais de semana.

Combinei que meu pai me buscaria às 12h, e ele só apareceu cerca de 40 minutos depois. O tédio, o sol, e a cerveja que fermentava em mim, enquanto esperava sozinho a carona, só reforçaram a pergunta que me faço desde o outubro de 2000: 'por que caralhos não resolvi tirar carteira de motorista naquele maldito ano dos meus 18 anos?'.
Na cidade onde me criei, andar de carro é não só necessário, por causa do transporte público precário, como é um atestado de hombridade só concedida a quem tem mais de 20 centímetros de falo. Ter mais de 18 e não saber cantar pneu, ou ter de assobiar para meninas sobre bicicleta ou só com dois pés, é pedir para não ser olhado. Looser total. Naquele ano, pouco antes da fatídica supracitada data, fui levado à minha iniciação automobilística. Conduzido por meu pai, que me levava para os arredores da cidade para aprender a guiar (como ele dizia), resolvi deitar o colete ao chão e pedir água depois da 302.103.506ª bronca tomada quando fazia o carro morrer em uma subida qualquer. Na última delas, deixei o banco de motorista, sentei no do passageiro, virei para meu pai e me calei. Pensava comigo: 'só volto a dirigir quando tiver meu dinheiro para comprar meu carro e minha carteira de motorista. No carro do meu pai não ando nunca mais'.
O dinheiro para a carteira até posso arrumar, mas a compra de um carro ainda está longe de minhas possibilidades, e não sei se por inveja, desolação ou teimosia, até hoje acho a maior das humilhações ter que ganhar carro de presente do papai para poder andar na rua seguro.
Humilhação que me parecia leve enquanto esperava - adivinha! - o papai me buscar na frente do clube, igualzinho como na época quando nem sonhava chegar aos 26, trabalhar, me virar de metrô, ônibus ou o quer que fosse na maior cidade do país.

Em Araraquara, ainda sou o menino que espera a carona; por isso, não tenho muito como contra-argumentar quando alguém brinca com minha namorada dizendo que ela, na verdade, é o homem da relação. Ela dirige, e me leva para lá e para cá (quando não é ela é meu irmão, três anos mais novo, 20 vezes mais esperto, 324 vezes menos orgulhoso que o irmão).

Mas não ter carro já me levou ao ridículo de pedir a ela, em meio a uma discussão mais acalorada: 'pára o carro que eu quero descer'. Por sorte, ela não parou - e por juízo, não ameacei me jogar da janela.
Mas, tirando o dia em que fiquei sozinho esperando por mais de 40 minutos meu pai na frente do clube, não teve dia em que me senti mais cretino na vida do que o dia em que minha namorada e eu entramos nos perréis por conta da clássica peleja 'você não gosta mais de mim'. Mal e porcamente, foi mais ou menos assim:
Ela:
-Estou cansada de não te ver.
Eu:
-Mas a gente passou a manhã inteira juntos.
Ela:
-Mas na SUA casa!
Eu:
-Mas você trouxe sua irmãzinha, a gente brincou com ela e ela gosta de vir aqui.
E ela:
-Porque VOCÊ só vê ela quando EU trago ela até aqui!
E eu:
-Mas eu gosto quando ela vem.
E ela:
-E qual foi a última vez que VOCÊ veio em casa?
E eu:
-Não lembro.
E ela:
-Tá vendo. Você não gosta mais de mim!
E eu:
-Eu gosto. (e, engasgado). É que eu não tenho carro pra poder te ver, puxa!
Eu falo. Bater em alguém que não tirou carta de motorista é como bater em alguém com óculos, dor de garganta e sofrendo de indisposição erétil. Foi humilhante, mas ganhei a peleja e a pena dela. Dela e do restante da humanidade, acostumada mais a me visitar do que ser visitada.
Sem minha carteira de habilitação, que há quase nove anos deixo para tirar só no ano que vem, tenho a mais pura sensação de que um dia ainda vou ser enterrado, a pé, como um triste e esquecido indigente.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

tempo perdido


Alguém ouvia Legião Urbana no ônibus. Vinha de algum fone, mal ajustado, ou propositalmente colocado em som ambiente. Não me irritou. Diferentemente de outros dias, não queria levar os 30 minutos de viagem até o caminho com o livro que me tem tomado parte dos dias, "As Benevolentes". Sentei-me, com os olhos presos na janela, disposto apenas a testemunhar o que o mundo me oferecia do lado de fora de meu percurso. E foi com os olhos presos na janela que pude ver a movimentação de policiais e guardas da CET, logo no ponto seguinte. Com os olhos presos na janela, pude ver que alguém havia se acidentado minutos antes. Com os olhos presos na janela - àquela altura um espaço compartilhado por outros passageiros, de pé, vendo o que acontecia - pude ver um homem com seus 40 e poucos anos, as pernas esticadas, cruzadas uma na outra, uma sandalha parca e suja. Deitado no chão, uma garrafa de água vazia na boca, os botões da camisa abertos, o peito massageado, em vão. Vi-o com os olhos fechados, a barba por fazer; a boca envolta de um sangue preso, quase preto; um fio vermelho escorrendo pelo canto. Com os olhos presos na janela, vi um motorista de caminhão, atônito, chamando pelo resgate; as mãos trêmulas, a todo instante levadas à cabeça, como quem se pergunta o que acabava de fazer. Num instante, visto numa fresta de janela, assisti, pela manhã, alguém morrer com as costas imundas no chão, enquanto os carros se entupiam logo atrás, buzinavam. De dentro, bem naquela hora, a voz que vinha do MP3 de algum passageiro parecia ganhar dimensão, em tom e sentido. O homem não respondia aos esforços e massagens em seu peito, e a música parecia feita para a ocasião. Alguém dizia não ter medo do escuro, mas pedia as luzes acesas agora. E o homem seguia sem emitir sinais de vida, enquanto alguém lembrava que o que havia sido prometido, ninguém prometera; numa manhã cinza como esta manhã, uma tempestade chegando, da cor de olhos castanhos de alguém que já não os abria. Pensei que, naquele instante, ele já estaria em coro, rebelde, inconsciente, lembrando que, sim, também era tão jovem. Muito jovem. Mas que não foi tempo perdido. E eu, na minha fresta de janela de um ônibus parado, só, enquanto o sinal não se abria, me perguntava quantos planos aquele homem acabava de interromper naquele instante. Pouco depois, pensei, alguém receberia a notícia. E como a receberia? Com que intenção ele saíra de casa, e quais eram os planos dele para logo mais, à noite, quando o dia acabasse? Teria ele vibrado com algum gol no fim de semana? Que desejo ou resolução teria planejado na última festa de fim de ano? Deixou alguma rusga com alguém, antes de se deitar - e dessa vez se deitar ao chão? Alguma garrafa de uísque, para bebemorar alguma conquista quando alguma coisa de tudo se acabasse? E como planejava morrer? Que música gostaria de ouvir, e em qual entonação? Qual seu pedido e qual sua queixa? O que diria para aquele que decidira seu rumo, numa fração de existência? Diria que era jovem? Que não tinha medo do escuro? Estava no escuro ou via luzes? Via que alguém tentava, sem desespero, uma salvação inútil? A quem pediria um abraço forte? Alguém para dizer que já estava distante de tudo, dentro de seu próprio tempo. Seu próprio tempo. Era o que ele parecia cantar, naquela música que embalava o ambiente, enquanto todos o viam intacto em sua - agora - imprecisão. Hoje, quando chegar em casa, vou ouvir alto essa música e lembrar desse amigo que não cheguei a conhecer. Ao pedir o nosso próprio tempo, vou direcionar a ele a única oração que poderia rabiscar em uma nuvem, num dia cinza como olhos castanhos, em uma casa, como todas as casas, com todas as suas luzes acesas. Acesas agora.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

de como não me tornei araponga da Abin


O sujeito parecia mais simpático do que de costume, e, assim que me aproximei, me chamou para uma conversa, num tom de assunto reservado. Alto, calvo e sempre suado num paletó em que é obrigado a se enfiar para trabalhar, no restaurante onde almoço todos os dias, o gerente esperou que eu colocasse a sobremesa do dia sobre uma balança viciada para poder tocar no assunto. Levei pouco tempo para escolher os doces – um pedaço de mamão e outro de abacaxi, colocados ao lado de um pedaço modesto de torta de menta coberta com chocolate. O prato ficou um tempo suspenso sobre a balança, que acusou R$ 3,50 – sim, onde almoço a sobremesa também é pesada; logo uma fila atrás de mim começou a se formar, e a extensão daquela conversa passou a me incomodar.
-Você conhece uma menina assim e assim, que sempre almoça aqui?
Demorei a descobrir de quem se tratava. Por que haveria de conhecer?
-Ela trabalha no mesmo prédio que você. Usa óculos de aro preto.
Sim, sabia de quem se tratava e disse que conhecia a menina já há algum tempo. Não contive e, ao dar a informação, perguntei:
-Por quê?
Ele não alterou o tom de voz, e não mostrou qualquer constrangimento para arrematar.
-É que estou querendo...sabe...flertar com ela.
Achei graça na formalidade da expressão, e também com o fato de ele ter procurado a mim para obter informações sobre a menina. Queria imitar a saída de um personagem de um antigo sitcom americano e dizer: “Olha, você poderia aproveitar, chegar nela, e convidá-la para um chá ou um passeio no século 16, quando as pessoas ainda usavam a palavra flertar”.
Mas devo ter inspirado confiança, pensei comigo, e resolvi devolver a confiança, crente de que poderia fazer um bom papel para a humanidade. Resolvi não guardar qualquer segredo que já não soubesse da menina, enquanto a fila do doce se avolumava às nossas costas, e meu prato seguia suspenso na balança, anunciando o fiado de R$ 3,50. Disse que até pouco tempo ela namorava um sujeito bastante gente boa, mas que o relacionamento não fora pra frente; disse também que ela não era de São Paulo, que era uma pessoa bastante agradável, de fácil conversa – rasguei, enfim, elogios à menina, pouco antes de ela aparecer no restaurante.
Vi os olhos do gerente brilharem, e tive a impressão de que ele deixara de ouvir meu relato assim que a viu se aproximar. Foi quando ele tirou meu prato da balança, e colocou as mãos nos meus ombros, suspirando um longo obrigado, como quem acaba de receber, de graça, as combinações da quina da semana.
Na hora de marcar o preço a ser pago da sobremesa, riscou o valor exato e marcou apenas R$ 1,00. Não foi por acaso, dado que olhou ainda para mim com um jeito de quem declara: “essa é na minha conta”.
Irritado, saí do restaurante com esperanças reduzidas de que um dia poderia me dar bem na profissão de informante, araponga ou jornalista. Não cairia bem descobrir, já com um diploma e uma suposta credibilidade em mãos, que uma informação minha não anda valendo mais que R$ 2,50.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

CT da Oscar Freire


Um comentário. Antes de encerrar a semana. Já viram a nova fornada são-paulina, que está em campo pela Copa São Paulo? Logo logo estará no time principal, para fazer companhia a Dagoberto e colegas. (Ver Bruno Uvini, foto não localizada no Google). Dá a impressão de que os olheiros do Tricolor estão selecionando boleiros (sic) no CT da Oscar Freire.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

o Copom, o trânsito, o atraso, o gol


Consegui chegar meia hora atrasado no trabalho hoje. Odeio chegar atrasado no trabalho, a não ser que seja por uma boa causa. Mas hoje cheguei atrasado porque, soube pelo rádio e pela balbúrdia logo à frente, que trabalhadores e banqueiros faziam protesto contra a decisão do Banco Central antes mesmo de o Banco Central tomar a sua decisão. Tripudiavam no meio da rua, no meio da minha rua, sobre uma eventual manutenção da taxa Selic, a malfadada taxa de juros que, dizem, pauta todos os juros de todos os bancos de nossa jurisdição. Atrasado, por meia hora, resolvi tomar o metrô e me atrasar ainda mais; pela manhã, trafegar pela avenida Paulista era quase missão impossível. Horas depois, soube que os camaradas do Copom resolveram enfim cortar 1 ponto, 1 ponto e nada mais da taxa de juros. Respirei aliviado, quando soube, e logo fui comemorar, do meu jeito, com mais vibração até que o gol do amigo Claiton Xavier, feito no mesmo dia, o tão esperado dia da estréia no Paulistão. E, como não tinha dinheiro investido em títulos da dívida pública, poderia comemorar sem culpa: os homens do Copom, o comitê de política monetária do Banco Central, não salvaram o dia, é fato, mas salvaram o futuro próximo, quiçá prospero. Numa canetada, resolveram desafogar o gargalo do setor produtivo e, de quebra, o trânsito da avenida Paulista.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

sexy aos 60




A menina já passou dos 60, e suas pernas são o que nela mais chama a atenção desde pelo menos os 15. Faz o mesmo papel na novela desde que a novela foi inventada; a mesma voz, os mesmos trejeitos. Casou, se não me engano, pela terceira vez, agora com um rapaz mais novo, ex-PM, forte, bonito, baladeiro, cheio de vida, essa que ela sente se perder a cada vela soprada em seus aniversários. É o rapaz que a fez se sentir viva, renovada. Jovem, sobretudo. E que a leva ao centro do picadeiro, um picadeiro cercado de gente faminta de um moralismo revestido: “Vamos ver essa velhinha otária se foder em outro golpe do baú”.
Acendem-se as velas, confirmam-se as previsões, e logo se tem um enredo de sucesso de público e renda – com direito a declaração de apoio da amiga-cocotinha-namoradeira, em programa de culinária, ao vivo e a cores, recriminando o suposto mau-caratismo do camarada que apareceu com a outra, a namorada nova, jovem e linda, no programa da outra-coleguinha-meninota-fofoqueirinha da TV. Se querem sangue, lama ou beijo na lona não é problema meu. Aliás, sou a favor da putaria aos 18, 25, 37 e depois dos 100. Só imagino que um centenário – digamos um Niemayer – deve ter algo a mais a me contar do que o que rabisca dentro das quatro linhas. Mas se escrevo sobre isso é também para confessar: quem não leu a entrevista nas páginas amarelas perdeu uma aula interessantíssima do que é envelhecer em nossos tempos. Tendo vindo das páginas amarelas, dá um tom de importância que as revistecas da vida não conseguiram empenhar. Não foi no site de fofoquinha, mas nas páginas amarelas que aprendi, por exemplo, que “pessoas com deformidade da mente, como ele, transam muitíssimo bem”. Não aprendeu? Então que tal descobrir, também pela revista mais vendida do país, que ele se escondeu atrás da porta do banheiro para filmá-la tomando banho de touca na cabeça, que fazia close das partes íntimas enquanto ela se lavava? Tesão, né? Ou que ele pensou em chantagear, com o material, “uma estrela brasileira, como a Fernanda Montenegro e o Pelé”?
E quem poderia se importar menos? Não sou eu nem é você. A entrevista, de cabo a rabo, é uma demonstração nítida de uma pessoa apavorada, mergulhada em um medo comum apenas a quem expôs a cara ao tapa – não sem qualquer consentimento. É a lógica do reality show, em que de alguma forma todos nós estamos mergulhados, em nossas comunidades, sites de relacionamento, expressão de opiniões ou mesmo neste blog. Esse mundo que desaba quando a gente se abre para ele, e ele mostra que de fato nos quer no chão, com o nariz entupido de pó, sangrando, gritando “pede pra sair”.
O medo de não receber deste mundo os tributos em razão de uma história que só nós, e mais ninguém, damos importância. Nós, autores, atores e roteiristas de nossas próprias vidas expostas, com o pânico de que, a qualquer passo em falso, seremos flagrados – e então todos descobrirão que não somos felizes, realizados, satisfeitos, humildes, belos e revigorados como fazem supor as fotos e legendas infladas pelo photoshop.
O medo de que saibam que fomos trapaceados, que acreditamos em promessas não cumpridas e que, no fim das contas, fracassamos. A reação, instintiva, é convencer a nós mesmos de que somos vítimas, estrelas vitimadas; para isso, é preciso convencer o mundo do nosso convencimento. O que antes se fazia no bar, agora a internet pulverizou. O que é novo, me parece, é que esse medo de envelhecer, de ser passado pra trás, de perceber que não somos mais desejados nem tratados com o respeito que uma suposta celebridade merece, chegou também às páginas amarelas.
A moça, pelo jeito, pirou, e seria apenas uma manifestação de reacionarismo irado atribuir ao orgulho e à vaidade os motivos para isso. O drama pessoal, quando se torna de interesse universal, é o sintoma de que esse pânico de um dia envelhecer e ter de catar os cacos de uma derrota anunciada já bate em nossa porta e ameaça fazer estragos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

brasil, o país do futebol alemão


Pronto. A partir de quarta-feira não vou mais precisar me entreter, quando chegar em casa, com jogos de dardos, ludo, xadrez, dama e pera-uva-maça-ou-salada-mista para matar o tempo que me resta de vida. A partir de quarta-feira, terei de volta os jogos do Paulistão. Como no ano passado, começa travestido de empolgação. Corinthians manteve um belo time, embalado, confiante, com moral entre os torcedores que viram no time de Mano Menezes um baluarte da luta contra o atoleiro. O Santos parece mais forte do que há um ano. Trouxe o Lucio Flávio, deve se livrar do Kleber e repatriar o Léo, e tem tudo para resolver a vida com o experiente Roni e o encapetado Kleber Pereira na frente. O Palmeiras chega em queda livre. Mais duas rodadas no Brasileiro e não assegurava vaga nem na Sul-Americana. Mas chega vivo, com esperanças depositadas no Keirrison, mais jovens candidato a craque do país, e na possibilidade de o Diego Souza, enfim, deslanchar e atuar por mais de três jogos seguidos com desempenho pelo menos razoável. Um Diego Souza inteiro, o que o time não teve até agora, é ainda melhor que metade da legião de meio-campistas do país. E, de repente, os meninos recém-chegados, como o Willians e o Marquinhos, podem estourar. Fato é que 2009 já começa com cara de São Paulo. A impressão é que 2005 não acabou, e que desde então só um milagre é capaz de fazer o clube ficar sem taça durante toda a temporada. Ano passado o time, embalado pelo bi no Brasileiro, veio com Adriano e fez miséria. Por pouco não afundou o Palmeiras – não fosse aquele pênalti no Lenny... – e por um segundo não seguiu adiante da Libertadores antes de engatar a terceira marcha rumo ao tetracampeonato. É aí que a história se repete: o time entra sem moral no Brasileiro, vai levando, levando e pá. Até a penúltima rodada já se sabe quem vai ser o campeão. Só que o caldo é montado agora, nessa época do ano. É quando o Muricy junta a tropa de matemáticos e monta a sopa, coloca um pouco de desdém na panela, um tempero de preguiça, põe o brilho, o coração e a empolgação pra secar – e evaporar – e está lá um time pronto pra ser campeão, com direito àquele jeitão blasé do Rogério Ceni, que comemora títulos com a emoção de quem enterra um avestruz no quintal. Azar, claro, dos outros times, que chegam à ponta da tabela com a sensação de quem ganhou uma batata quente pra carregar na mão até a linha de chegada. Na ausência de talento e gana, a que todo mundo anda mergulhado, vence quem não se afoba com a chance de levar a melhor. É aí que chegou e se instalou, germanicamente, o futebol de resultados, sem correria, encanto ou empolgação. É a disciplina do pebolim - ou alguém se lembra de algum grande jogo, uma grande vitória tricolor em 2008? A linha de chegada está longe, muita pedra ainda vai rolar. A empolgação fica para primeiro plano, para a primeira rodada do ano, mas o desfecho está pré-emoldurado. Estamos no país do futebol. O país do futebol alemão. O futebol sem graça, e sem charme. Mas ruim com ele, pior sem ele. E secar também é torcer; mais uma vez, a próxima quarta-feira só acaba em dezembro. E eu mal vejo a hora de começar.
Colaborou K José Eduardo Rondon K (piada interna. chupa, humanidade!)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

artigo interessante





Prometo que não vai se repetir, ao menos não tão cedo. Mas esse artigo, publicado na última quinta-feira no Tendência e Debates, da Folha, está dando o que falar; e tinha que estar aqui, porque é muito do que cheguei a pensar, pensei em manifestar, ou manifestei de forma errada sobre a vida na província, após passar mais alguns dias no interior, tão rico e esquecido. Villa matou a charada, linkou a natureza política com modo de vida e desmando local; jogou, aparentemente sem os preconceitos que marcam a questão, luz sobre uma ferida mal fechada pela gaze. Minha indicação de leitura vale, hoje, mais do que qualquer post que pensei em fazer, por mim mesmo, para encerrar a semana. Segue:




"Viver de província"
MARCO ANTONIO VILLA
Apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB, o interior continua marcado pelo provincianismo
NO FINAL do Império, em meio às turbulências políticas, Júlio Ribeiro -escritor, gramático e polemista republicano- cunhou a expressão "viver de província", nas suas "Cartas Sertanejas". Era uma definição sarcástica do pobre cotidiano político-cultural do interior de São Paulo. Depois de 120 anos, pouco mudou:apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB brasileiro, o interior continua marcado pelo provincianismo.A inexpressividade política do interior é suprapartidária. Vez ou outra algum grupo tenta ter espaço regional, mas acaba fracassando. O último foi a conhecida "República de Ribeirão Preto", expressão cunhada para designar os aliados do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, em Brasília.Porém, a denúncia de uso pouco ortodoxo de uma mansão, na capital federal, levou ao naufrágio do grupo, mesmo com a eleição de Palocci para deputado federal. E o interior, para o bem ou para o mal, continuou sem liderança expressiva.A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) poderia ser um palco para o aparecimento de lideranças interioranas. Contudo, das suas atividades pouco ou nada se sabe. Muitos nem sequer imaginam onde, na capital paulista, se localiza o prédio de um dos Poderes do Estado.Dos seus 94 deputados, mesmo os que acompanham a política regional sabem, se tanto, o nome de meia dúzia. O noticiário político prioriza o Congresso Nacional. A Alesp é solenemente ignorada: só é notícia quando ocorre denúncia de um suposto escândalo administrativo.Outra possibilidade seria a ação de alguma administração municipal que se notabilizasse pela inovação. Mas, dos mais de 600 municípios interioranos, quais poderiam ser destacados pela originalidade administrativa?A política estadual concentra-se na capital e, no máximo, na Grande São Paulo. Os líderes partidários que têm presença nacional também atuam nessa região. O interior é marcado pelo situacionismo, pela política do "sim, senhor". Os prefeitos mudam de partido acompanhando a base política do governador. Não têm opinião formada. E os deputados são cobrados pelos seus eleitores para trazer recursos para suas bases, e o preço é sempre apoiar o governo.No campo cultural, apesar do grande número de faculdades e universidades instaladas no interior, não houve mudança. O conservadorismo local venceu a potencialidade transformadora da universidade.Eventualmente professores universitários passaram a participar da política local, mas sempre buscando alguma forma de composição política com os poderosos locais. E, quando necessário, os conservadores utilizaram-se da violência para expulsar os professores indesejáveis, como em São José do Rio Preto, logo após o golpe de 1964, na faculdade local e que hoje é parte da Unesp.Há uma valorização absoluta do dinheiro e um desprezo pela cultura.Em muitas cidades há mais joalherias que livrarias. As políticas culturais são fadadas ao fracasso. O poder público -tal qual a maioria dos eleitores- não tem interesse nas atividades culturais: elas não dão voto e, por vezes, dão problemas.Em Araraquara, depois do espetáculo "Mistérios Gozosos", de Oswald de Andrade, José Celso Martinez Corrêa e grupo foram processados, acusados de "vilipendiar atos e objetos de culto religiosos". O processo foi movido por araraquarenses incomodados "moralmente" com o trabalho de Zé Celso.Uma "atividade cultural" muito conhecido no interior, espécie de marca regional, é o massacre anual de animais conhecido como Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos. Como tudo que é ruim, prolifera rapidamente: os rodeios espalharam-se pelo Estado.No Vale do Paraíba, criaram até um rodeio para Cristo, que, certamente, deixaria o Nazareno horrorizado.A maioria dos jornais é subsidiada pelo poder público ou por algum potentado local. O nível das publicações é rasteiro. O espaço da coluna social é várias vezes superior ao destinado a temas políticos.Quando surge uma imprensa independente, os jornalistas passam imediatamente a ser perseguidos e ameaçados. Basta recordar, entre tantos outros exemplos, dos tristes episódios de Marília, que envolveram um conhecido político local e o ataque criminoso às instalações do "Diário".Júlio Ribeiro morreu em 1890, aos 45 anos. Viu muito pouco do Brasil com que sonhou: sem escravos e republicano. Mas o interior não mudou: tal qual no final do século 19, continua impressionando pelo dinamismo econômico e pelo provincianismo.



MARCO ANTONIO VILLA, 52, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor, entre outras obras, de "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (Ática).

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

54 horas de vida


Ganhei uma bolsa para estudar inglês num esquema de superintensivo, desses que começam às 7h e vão até as 10h, de todas as manhãs, de todos os dias, exceto fim de semana, até o final de janeiro. Cruel. Pago hoje o preço por ter desdenhado os cursos de inglês que havia na minha cidade, quando minha cabeça era nova, aberta e arejada, e a chance de algo cair nela e ser fixada era 98% maior do que hoje em dia, quando ela já está entupida de bobagens. Seja como for, já botei na cabeça, e não é de hoje, que não vou fazer, agora aos 26, corpo mole pra aprender algo que já deveria saber de cor e salteado. E a chance me foi dada só agora, então é pegar e não largar. Tenho até melhorado na hora de ler, falar – ok, escrever nem tanto – mas para tentar acelerar o ritmo e chegar, pelo menos até o fim do ano, com o basicão morto e enterrado, resolvi aproveitar a bolsa e encarar a parada. Que deveria começar hoje. Como não sou daqueles que já despertam e caem de pé dentro da calça, resolvi pôr o relógio pra despertar às 6h. Pra dar tempo de fazer meu próprio café, correr a casa, ler alguma coisa enquanto acordo, tomar banho, escovar os dentes. Tudo num ritmo que...bem. Basta dizer que consegui chegar à aula às 7h30, vinte minutos atrasado. Nesse meio tempo, só conseguia elaborar uma única frase em meu inconsciente: “E pensar que essa porra agora vai ser todo dia”.
Fiz as contas, refiz, tirei a prova dos nove, desconsiderei finais de semana, pensei em quando seria o próximo feriado. Tudo pra botar na cabeça que poderia haver refresco em meio a um troço que ameaçava ser um percalço já em sua definição. Não consegui fechar as contas, e no caminho só conseguia pensar em como era minha vida até então, e o que eu trocaria por mais 20 minutos de sono, uma caminhada pelas ruas de manhã, uma horinha a mais para assistir qualquer coisa na TV, ler qualquer rabisco no jornal... Qualquer coisa que não me colocasse, tanto tempo, numa sala fechada. E como meu nariz de cera desenhado acima já deu o que tem que dar, devo dizer, então, que mal contive o sorriso quando, despenteado, sonâmbulo e com olheiras, soube que não estava matriculado para aquele curso. A secretária da escola me avisou assim, já com pena da minha insistência, que não haviam conseguido fechar a turma para o curso da manhã. Só às 18h – horário inviável pra mim. Não sei o que aconteceu na hora da matrícula, mas posso imaginar o que me levou a chegar em casa, meia hora depois, sorrindo, cheio de piadas pra contar, num bom humor que não via em mim desde a Copa de 94, quando o Baggio perdeu aquele pênalti. Me sentia como se acabasse de sair do médico com a notícia de que ganhara mais 54 horas de vida. Ou de sobrevida. Não é sempre que se ganha tanto com tão pouco, e minha vida não anda valendo mais que um relógio de pulso. Em 54 horas poderia ir e voltar seis vezes para Araraquara. Ou poderia assistir a 27 jogos do Palmeiras, sem precisar sair de frente pra TV, e já com o tempo para os comerciais descontados – praticamente metade de uma temporada, mais do que todos os minutos somados em que o Pedrinho, do Vasco, conseguiu ficar em campo em toda carreira. Ou, já abusando da boa vontade, poderia também ver 324 vezes meu vídeo favorito no YouTube, que soma exatos dez minutos, antes de morrer.
Bobagem, eu sei, mas se minha capacidade de fazer conta não estiver tão defasada quanto meu talento pra traduzir Philip Roth para o português, foram as únicas bobagens que, já sóbrio e já conformado com minha sobrevida, consegui pensar. É que na hora não consegui unir matemática com o impulso provocado pela notícia, então não foi difícil imaginar que nesse tempo eu poderia viajar para a Amazônia, pescar com meu avô, me preparar para a São Silvestre ou escrever o livro definitivo sobre a humanidade – tudo isso antes do meu horário de trabalho. Ok, talvez não vá e volte da Amazônia assim numa manhã, mas pelo menos agora tenho algumas horas a mais de sono para pensar em algo melhor pra se fazer até o momento de acordar. Até lá, vou ter que me matricular no mesmo nível, do mesmo curso, da mesma escola, agora no semestral. Mas aí minha morte vai ser, assim, à vista, mas em parcelas e sem juros a pagar.

domingo, 4 de janeiro de 2009

when you were young...


Não é uma boa idéia tomar café num sábado sem muito o que se fazer em São Paulo. Esse “sem muito o que se fazer” coloque-se entre aspas; talvez a expressão certa seja sem muito animo para se fazer tudo o que se tem pra fazer num sábado chocho na cidade. É que alguma coisa está errada quando você vai até o cinema pra tomar café, e só tomar café (minha namorada não animou de assistir ao “Gomorra”, de Matteo Garrone, único filme disponível àquela hora do dia, e voltamos para casa). Às 22h, por conta do café, não tinha santo que nos fizesse pegar no sono, então aproveitamos que meu irmão anda gravando em DVD a torto e a direito tudo o consegue baixar no computador, e fomos ver o “Reflexos da Inocência”, produção britânica do diretor Baillie Walsh que já havia assistido no cinema. Filme nota 7,5, no máximo, e com a tradução do título original (“Flashback of a Foll”) que, em português, dá a entender que estamos diante de um título tipo "Brasileirinhas" em cujo enredo alguém perdeu a virgindade precocemente, conforme comentou o amigo Fernando Vives. Poderia, depois dessa, nunca mais querer saber do filme; mas algo ali me fez parar e pensar e rever muitas das coisas com as quais me deparei em tempos recentes. Perguntas do tipo: quem era eu antes de decidir ser quem eu sou? Em que momento tomei o caminho certo ou errado? O que me levou a isso? Foi algo provocado? Se sim, por mim ou por imposição? Foi acidente? O que eu disse na hora errada? O que deixei de dizer? É possível consertar? É possível refazer o caminho? Se houve erro, é justo o preço a ser pago? Afinal, há preço a ser pago? Já disse que o filme é nota 7,5 (muito por conta de um certo moralismo que deixa escapar), mas se despertou em algum momento alguma dessas perguntas, sem dar como alternativas as respostas A, B, C, D ou NDA, é porque algo havia em comum entre a vida deste espectador e a do menino que desde cedo é colocado diante de escolhas que mudarão não só a sua mas a vida de todos à sua volta. O caminho é um só, mas os desvios (representados pela vizinha casada e ninfomaníaca que o tirava da trilha certa do que – ooooh pieguice safada – o coração parecia ditar) podem levá-lo a um destino sem volta. Uma tragédia durante uma dessas entregas faz com que aquele menino quase bobo, inocente e assustado com as ofertas do mundo real se transformasse no tolo de fato, ególatra, viciado e solitário, embora bem sucedido (e em decadência) ator de Hollywood (clichezão-ponto-baixo-do-filme). Mas ao menos uma cena (http://www.youtube.com/watch?v=ZBZBP2cl2zM), quando a linda personagem de Felicity Jones finalmente convida o jovem Joe para passar uma noita em sua casa, para se vestirem como seus ídolos, beberem, cantarem e dançarem longe dos olhares inquisidores dos pais, já nasce clássica, assim como a parte final, quando a história se cruza e volta a um entroncamento que leva cada qual a ocupar os espaços que foram tomados nos últimos 25 anos. E a revisar cada passo em seu devido lugar.
É essa coisa adolescente, das descobertas, da infração das regras, do esperar a viagem dos pais e a casa vazia; de penetrar as áreas não permitidas da casa, de ouvir os sons que nos carregam para a transgressão (neste caso, Bowie e Roxy Music), de assumir posturas por si; de se fantasiar e fechar os olhos e fingir transgressões maiores, ainda que fora do alcance; é essa coisa adolescente, bem contada, que faz do filme inesquecível, apesar dos 7,5 dados ao léu pela irregularidade. A música-tema – “If There is Something”, de Roxy Music – tem boa parte nessa cota, porque não poderia haver outra melhor para impulsionar tudo isso que um dia se tentou transmitir. Lift up your feet and put them on the ground/ You used to walk upon (when you were young)… É a mesma sensação de que essa inocência, uma vez quebrada, nunca mais voltará ao lugar; no lugar dela, só a lembrança e o peso que sua dimensão impõe ao longo dos anos. E a certeza de que nada mais está ao alcance das mãos, quando vista desse ângulo. Essa nostalgia, depois da morte, é a mais triste das saudades.

os iluminados


Enferrujado e desacostumado a ficar em silêncio ou sem internet, aproveitei o final da manhã de hoje pra ler, de uma patada, a segunda metade de “O Exército Iluminado”, de David Toscana, escritor mexicano que até há pouco só sabia por ouvir dizer. A primeira metade me levara duas semanas para ser lida, sem que houvesse motivo especial (ou falta dele) para minha apatia. Mas o tempo fechado, e a manhã que parecia de outono hoje em São Paulo, com um vento que logo me lançou de volta ao cobertor, me levaram por impulso a voltar à missão, com uma concentração que não havia encontrado nos últimos dias. Resultado: em pouco menos de 200 páginas, consegui perder a conta de quantas vezes tive de fechar o livro para rir. Rir rir mesmo, como se estivesse assistindo a algum episódio de Monty Phyton, uma das poucas coisas que me fazem ter dor de barriga quando vejo. A história, em si, já vale a entrada. O livro conta a história dos surtos protagonizados por Ignacio Matus, um professor nacionalista frustrado e amargurado por colecionar desaforos e desautorização de alunos décadas mais jovens que ele. Desafortunado também por jamais ter sido mandado para uma Olimpíada para testar seu talento como maratonista. O jeito é simular trajeto similar, em sua Monterrey, para competir, a milhares de quilômetros, com os maratonistas que disputavam a prova oficial em Paris, em 1924 – por ter finalizado a sua prova particular com tempo pior apenas aos do primeiro e segundo colocados, passa parte da vida cobrando, por direito, a medalha de bronze e a condecoração que o anonimato lhe negara – e fora brotar no peito de um competidor americano. Cansado de desaforos, resolve, um dia, reunir uma turma de jovens com problemas mentais, coloca todos numa carroça, e parte em direção ao Norte para empreender uma inglória missão: tomar o Texas dos Estados Unidos e anexá-lo ao território mexicano. O moinho da vez é o Exército americano, além do desafio de motivar uma tropa que baba, dorme, surta, ouve vozes, confunde qualquer córrego com o rio Bravo e, já a caminho da empreitada, ainda precisa descobrir se é preciso matar uma legião inteira para se vencer uma guerra. O esforço para se entender as alegorias (o sectarismo do espírito antiamericano? a bravura de quem se sujeita a contestar a ordem dominadora? a morte do bom senso em meio às omissões? a releitura, pós 11 de setembro, de ataques terroristas armados contra alvos nem sempre bem escolhidos? o uso de inocentes para missões tampouco insanas?) vale menos do que a experiência de se ter à frente uma bela história, e muito bem escrita. É uma espécie de “Incrível Exército de Brancaleone” em letras, que lembra as tiradas de um Luis Fernando Veríssimo, mas com a imaginação fantasiosa de um Juan Rulfo em dias atuais – aliás, é incrível como tudo no México parece ter uma herança dele em algum canto, talvez até mais do que as pegadas machadianas no Brasil. Pena que minha primeira grata descoberta do ano me foi apresentada com atraso, e ainda assim graças a uma inesperada inversão térmica que me manteve na cama neste primeiro domingo de 2009.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

o natal de 92


Fico com o espírito dilatado quando vejo chegar dezembro, mas devo confessar que já sinto falta do ritmo normal de pressão e temperatura dos dias em que todos, obrigatoriamente, devem estar de pé pra fingir que arrastam as bolas de ferro e algemas presas ao tornozelo da economia do país. Sinto falta de ver coisas funcionando ou qualquer coisa que não sejam suspiros ou votos de bom tudo o que exista. Nada contra os bons sentimentos, mas troco qualquer um deles pelos jogos de quarta-feira na TV (para quem não sabe, estamos em recesso de futebol). Passamos dois meses cantando vivas à paz, à bondade, à fé e à esperança, ao tempo em que Israel estraçalha a Faixa de Gaza, e nós, do Amapá ao Rio Grande do Sul, temos que juntar os cacos de esperanças que se cristalizam, a partir do dia 1º, com os mendigos jogados pelas ruas – em parcos minutos de caminhada até o trabalho, hoje, pude conferir alguns empapados pelos próprios vômitos, jogados ao léu, à espera de um Ano-Novo que não virá. Não foram chamados às ceias das duas últimas semanas.
Dessa vez pelo menos posso dizer que me escusei a participar de movimentos e correntes como as brincadeiras de amigo-secreto de todos os anos, com exceção das que fazemos em família. Não tenho boas lembranças dos amigos-secretos, e penso que isso começou na festinha de final de ano que fizemos em Araraquara, em alguma data de dezembro de 1992 (disso eu lembro). Estudava em escola pública, e convivi durante um tempo com pessoas que mal podiam pagar a condução ou o caderno para tomar as notas do que os professores expunham no quadro negro. O Fábio, um amigo tímido e descabelado da classe, fora chamado para participar da festa, que seria realizada no fundo da sala, nos últimos minutos das últimas aulas. Mas me confessara, antes do sorteio do amigo-secreto, que pensava em cabular a aula justamente no dia combinado. Até queria tirar os papéis, como o fez, mas adiantou que fatalmente daria o balão no dia da entrega dos presentes. O motivo: nem ele nem sua mãe (era órfão de pai) teriam um puto pra comprar qualquer coisa que os meninos do centro (como éramos chamados) iriam adquirir com facilidade com a ajuda dos pais. Já contava com seu sumiço, e já nutria uma pena fodida do camarada quando, sem me avisar, ele resolveu aparecer no dia, com uma garrafa de guarajá e pedaços em fatia de um bolo cujo gosto não me vem à mente a não ser como uma iguaria amarga pelo sacrifício. Trazia também um pacote nos braços, pequeno, mal fechado em papéis coloridos. Soube naquele dia que a idéia de furar a festa para não dar de cara com gozações fora abortada quando, ao desembrulhar o papel, dias antes, leu meu nome como seu amigo secreto. E, no dia combinado, em frente da sala, foi preciso pedir que ele repetisse mais de uma vez o meu nome quando chegou sua vez de anunciar o seu amigo. O anúncio veio quase num sussurro, que escondia uma vergonha por ter, em toda a sala, o menor pacote entre os colegas. Fiquei de tal forma incomodado com a situação que me esqueci de abrir o presente na frente dos colegas, como que a poupá-lo do constrangimento de dizer: “foi o que pude comprar”. Abri, num canto, e me deparei com uma coleçãozinha de carrinhos de plástico, longe de ser minha preferência, numa época em que crianças queriam ganhar bonecos (os hominhos) que falavam e rodopiavam e se explodiam em terrenos inimigos desenhados pela Estrela, potência entre fabricantes de brinquedos naquele tempo. Abri o pacote, senti um aperto no peito que só me vêm à lembrança quando é época de Natal e amigo secreto (tudo começou alguns anos antes, por conta de uma história que vale a pena ser contada um dia desses). O Fábio deixou a sala e foi chorar num canto. Eu e outros amigos fomos até ele. Não me lembro do que falei, só sei que me custou um esforço monstro pra tentar convencê-lo de que, sim, eu havia gostado do presente e que ele não precisava se preocupar; mas aquele papo de que o que vale é a intenção me entregou de uma forma que o remendo ficou pior que o estrago. Não lembro quando foi o momento em que o Fábio parou de chorar, nem posso ter certeza que ele o deixou de fazer um dia. Mas aquele choro, àquela altura, era de todos nós: naquela manhã, aos 10 anos, começávamos a nos dar conta e a nos incomodar por dar passos cada vez mais largos rumo às crueldades incrustadas nas convenções do mundo adulto.

o dia do bode ou uma outra forma de se desejar feliz ano novo


O ano é do boi, mas o dia é do bode. De longe, o 1º de janeiro é a data mais tediosa e mais solitária da humanidade. Diria odiosa. É possível encontrar pessoas em cemitérios em dia de finados, ou observar crianças correndo nas ruas e praças com seus brinquedos recém-adquiridos nos dias 26 de dezembro de todos os anos. E a quarta-feira de cinzas, pelo menos no Brasil, há muito não é de cinzas; o povo puxa, estica e leva o Carnaval até o domingo da semana que acaba, varrendo a ex-cinzenta quarta-feira com ela. E a sexta-feira santa é fúnebre, mas há vida dentro das igrejas e cinemas, ainda que escuras. Mas 1º de janeiro é o dia do abandono. Fácil que é. Não tem propósitos, a não ser os que foram feitos na véspera, durante a virada, quando meio mundo começa a elaborar planos, mudanças, reajustar sonhos. Que serão, muitos, colocados em práticas de fato – mas só a partir do dia 2. Ficamos nessa; os que beberam, já acordam com gosto de ressaca na boca – uma bela forma de se começar o ano. Os que não beberam, sentem um outro tipo de ressaca, a moral, dependendo dos estragos do ano anterior. É a hora que se pensa: “mas já? Nem acabamos 2008 e já falamos de 2009?”
Dia 1º de janeiro é o dia da preguiça. O dia da saudade a que se referia Raul Seixas sem citar nomes nem datas precisas. (“Hoje eu vou beber para celebrar o aniversário do seu Gaspar...Hoje é feriado é o Dia da Saudade...”). Até o Carnaval, estamos condenados ao purgatório; mas o dia 1º é o inferno dito e feito, faça chuva ou faça sol. Não vejo lojas nem bares nem supermercados abertos. Fosse qualquer feriado, em qualquer dia da semana, mês e ano, e posso sair de casa a hora que for; posso sentar a qualquer hora em qualquer mesa do Asterix e encontrar repouso e abrigo. Se der fome, tenho o Black Dog, aberto 24horas. Mas não no dia 1º, dia em que não vejo ônibus e que o metrô dá a sensação de que só voltará a circular na próxima Copa do Mundo. Se um dia os senhores me elegerem deputado, essa será a primeira proposta a ser apresentada pela minha pessoa à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara: acabemos com o dia 1º de janeiro. Nesse dia não circulará ônibus, jornais e ninguém sairá de casa. Porque esse dia deixará de existir. Vamos emendar a data: beber às farras no dia 31 e acordar no dia 2, prontos pra começar de novo, e contando com todas as padarias, cafés, bares, livrarias e cinemas com as portas abertas. Só assim será permitido desejar aos senhores um feliz Ano-Novo sem a desculpa de que o jogo só começa após a quarta-feira de Cinzas. Essa que nem sequer existe mais.