sexta-feira, 6 de março de 2009

lembranças do seu Armando




Fiz esse texto em meados de março de 2007, quando nosso amigo Armando, o andarilho que passava de bar em bar de São Paulo vendendo os bonequinhos confeccionados pela esposa, morreu após sofrer infarto no meio da rua. Na última terça-feira, estava no bar que frequento há pelo menos cinco anos, e começamos a lembrar dele. Exatamente na última mesa onde tive com ele minha última conversa _e comprei meu último boneco da coleção mal iniciada. O texto nunca me serviu pra nada; nunca foi publicado, nem em papel, nem na internet. Lembrando da história, deu vontade de usar esse espaço para render minha última, e retardada, homenagem ao sujeito que deixava o fim das noites mais poéticas no duro concreto da Paulista...


Segue:







Seu Armando saiu de casa sem a bicicleta na noite de quarta-feira. A pedido da esposa, pegou o ônibus na Vila Cachoeirinha, zona norte de São Paulo, porque andava cansado para pedalar.
Como toda noite, seguiu para a avenida Paulista, onde havia pelo menos 35 anos iniciava sua ronda noturna por bares da chamada "Prainha", na Joaquim Eugênio de Lima.
Andava animado porque encontrara naquele dia um antigo amigo que vive na Europa e, de férias no Brasil, havia encomendado toda a coleção de bonecos de pano, confeccionados por sua esposa, que Armando vendia pelos bares da Paulista e da Vila Madalena de domingo a domingo. Depois de se encontrar com o amigo, almoçou com os filhos, descansou e, antes de sair de casa, repetiu a pergunta feita todas as noites à esposa, Vera: "quer que traga alguma coisa da rua?"
A rua era a segunda casa de seu Armando. Com os cabelos compridos, brancos de certa idade e presos só por uma fita elástica, trotava de bar em bar com a magreza peculiar tentando vencer a rabugices de boêmios que se mostravam incomodados com suas ofertas. Àquela altura, não demonstrava receio para interromper conversas em mesas já emporcalhadas de cerveja e embriaguez. Não podia ver alguém triste que já puxava papo: queria saber dos nomes, das profissões, das rotinas. Às vezes até se esquecia dos bonecos.
Aos 62 anos, Armando Rafael Colacioppo tinha jeito pra palhaço, mas dizia mesmo ser o último socialista de São Paulo. Paulistano _nasceu e cresceu na rua Barata Ribeiro_ e engenheiro naval formado pela USP, queria ter na vida apenas duas camisetas. Uma para usar e outra para lavar.
Em uma espécie de troncha levada como sacola, carregava pelas ruas bonecos que ficaram tão famosos quanto os bares que frequentava_o Marciano Tarado, o Zé Celsinho, o Inconsciente Coletivo. Vendia por noite 30 bonecos, a R$ 5 cada _se o cliente chorasse, levava até por R$ 2.
Da região da Paulista, seguia, a pé ou de bicicleta, até a Vila Madalena. E, antes de voltar para casa, comprava, a pedido da mulher, alguma encomenda, geralmente fruta ou iogurte. Tentava convencê-la a parar de fumar.
Brincava com Vera que, agora que os filhos, os publicitários Márcio e Roberto Colacioppo, haviam casado, estava livre para fazer a revolução ao lado dela.
Queria viver como hippie e, segundo a mulher, quase conseguiu.
Na última semana, no último trecho de sua última caminhada, no Bar Filial, na Vila Madalena, encontrou-se pela última vez com velhos amigos da noite _hoje quase todos avôs.
Mas Armando, antes mesmo de começar a revolução, resolveu não voltar pra casa. Às 6h20, entrou no hospital na Vila Cachoeirinha porque não se sentia bem.
E caminhou até o corredor, à espera de um atendimento para o qual não havia tempo. Um infarto do miocárdio interrompeu a caminhada. Em sua última passada, esta mais larga, Armando estava junto de seus bonecos e da velha camiseta. Pronto para a última caminhada.

3 comentários:

Pontal Caraguá disse...

Puta merda. Ele sempre interrompia as conversas para vender os bichos dele. No início, ficava meio puto. Mas ele era engraçado pacas. Por sorte, adquiri algumas das suas obras imperdíveis: o Zé Celso, a Notívaga e o ET erótico. Ele prometeu dezenas de vezes que faria uma réplica do Lula pra mim, mas nunca se empenhou em fazê-la. Talvez não teve tempo. Faz falta nos botecos da vida...

Anônimo disse...

Não conheci o cara. Mas me empolguei com seu texto.

Anônimo disse...

Lindo texto, Matheus. Tenho um boneco dele aqui em casa até hoje. O derradeiro de uma coleção que foi se perdendo nos apartamentos em que morei. Uma figura, o seu Armando. =)