quinta-feira, 26 de março de 2009

luta de classes



Confesso que fui com uma certa má vontade conferir o "Entre os Muros da Escola", com medo de que o tema - os desafios de um professor em uma escola púbica francesa e diante de uma sala de aula que não o aceita - resvalasse em mais uma aula-lição no estilo "Ao Mestre com Carinho"...aquela coisa toda de que as pessoa se estranham no princípio, rola uma troca de farpas, mas no fim, diante de desafios maiores, todos se entendem, se descobrem e veem que são pessoas e que se amam e blá blá blá. Mas quem resiste à declaração de Sean Penn, presidente do júri que deu a Palma de Ouro em Cannes ao longa de Laurent Cantet, de que ele "tem tudo o que se pode querer de um filme"? E tem.

Primeiro porque assume riscos comuns em um trabalho desse porte, e escapa de erros básicos, que são - sempre - os clichês, as pieguices, os retratos forçados e estereotipados de uma geração.
E porque, ao falar sobre adolescentes, sistema de ensino, desafios do aprendizado, não se propôs, como não o faz, a tentar rabiscar um retrato da realidade, mas sim um recorte de algo que permeia relações humanas comuns em uma situação específica (a França dos imigrantes) e, mesmo assim, universais. E porque não se propõe, sobretudo, a emitir respostas, como refuta o próprio François Bégaudeau, autor do romance homônimo, ator principal e corroteirista do longa.

O filme é sobretudo um mergulho num turbilhão de perguntas, nas quais os próprios personagens estão imersos.

A começar pela brilhante atuação de Bégaudeau como professor de francês de uma turma tão complexa quanto a sua composição (são estudantes malienses, um marroquino, um chinês, uma muçulmana e por aí vai). Esperava que tocasse num ponto nevrálgico: a imigração ilegal, os preconceitos, e o direito dos filhos dos imigrantes de se utilizarem de um sistema público de ensino útil...acertadamente, a questão é deixada de lado, para depois, e apenas permeia uma das situações filmadas.
O que surpreende no filme é não haver vítimas nem algozes; mas diferenças de propostas e, mais que isso, a total ausência de noção do que leva a uma incomunicação entre os polos elementares de uma escola. De um lado, alunos, com trejeitos, rachas, posições e identidades em formação, e dispostos a lutar por algo que não sabem exatamente o que é.
De outro, professores dispostos (sem dúvida) a passar à frente um certo conhecimento, numa missão nobre em si, mas cuja proposta está asfixiada em uma instituição fechada, mais preocupada em vigiar e punir do que em saber exatamente onde todos, no mesmo e exato barco, estão sendo direcionados. Naquele lado, alunos diversos, que gostam de futebol, rap, MTV, e fissurados em iPods, celulares e outras janelas que os mantém distantes e conectados com o mundo. No outro lado, muros, grades, regras defendidas com velhas armas: giz e lousa.
Algo parece não dialogar; é afinal uma intifada de gente armada com paus, pedras e estilingue para combater os super-caças das mudanças que vieram pra ficar.

Por isso, é difícil para o professor aceitar ser questionado o tempo todo por alunos que ele imagina que nunca chegarão a lugar algum. Afinal, são jovens, vulneráveis (os pais podem ser deportados a qualquer momento), insolentes e não se importam com o que realmente importa.
Mas o que, afinal, importa?
O que todos fazem ali, fechados, se o imperativo é a abertura, é o novo? O que explica a ofensa do professor quando a estudante muçulmana pergunta por que, em seus exemplos, os nomes de personagens são americanos (Bill e Bob) e nunca árabes? Ou quando é questionado por que devem aprender o pretérito imperfeito do subjuntivo se aquilo não é usado nas ruas que conhecem em pormenores? (afinal, é pretérito) Por quê?

Em nome de uma missão, vê-se um professor em ponto de explosão quando para para suspirar, olhar, pensar, cerrar punhos e sobrancelhas - é impressionante notar o movimento do maxilar de Bégaudeau cada vez que um novato levanta a mão para tentar saber o porquê de algo. Talvez porque ele mesmo, o professor, não tenha explicação.
Vê-se no filme uma inspiração nítida da ideia de Michel Foucault de que a manifestação do poder, dentro das instituições, como as de ensino, se aplicam após a construção das formas de saber: é a instauração das disciplinas, de formas de controle (de presença, de chamada, de notas, boletins, reuniões com os pais) que permitem criar uma identidade a uma multidão dispersa, separada apenas por gênero e idade. E, ao produzir conhecimento, por meio de fichas, prontuários e históricos, alunos e professores se tornam os mesmos reféns de um mal maior: a instituição disciplinar.
Porque, quando se conhece, é possível identificar desvios; e quando o desvio se torna regra, a saída é se proteger, como o faz Simão Bacamarte, personagem de Machado de Assis em "O Alienista" quando resolve mandar todos para o manicômio (afinal, uma instituição fechada e disciplinar, como a prisão e a escola).

Talvez seja por isso que o professor do filme insista tanto para que cada um fale e produza sobre si mesmo na aula, mas se nega a dar explicações sobre sua vida pessoal - não se sabe quem é, a quê e de onde veio; o que leu e o que o inspirou. É porque, diria Foucault, produção do conhecimento sobre algo é uma forma de ter o controle em mãos.
No filme, o mal maior é apresentado como uma instância denominada "conselho disciplinar". Não se sabe exatamente para que serve, mas vê-se o temor dos alunos de que, ao ultrapassarem a linha do que deles se espera, possam ser levados a tal instância, que definirá os seus destinos - e talvez o de seus pais, ilegalmente instalados naquele país que abriga a todos, mas, ironicamente, não parece oferecer abrigo. As discussões nessa instância, como se vê, não é outra se não ampliar as formas de controle para que a própria instituição se proteja dos arroubos de adolescentes ferozes, dispostos a produzir revoltas em busca de uma única resposta: afinal, o que fazemos aqui?

Felizmente, esse questionamento não é feito com estiletes, revólveres ou ameaças se não verbais. Todos estão a ponto de explodir, mas, em meio à agressividade presente, conservam, do jeito deles, uma confusa mas pura noção de lealdade e orgulho. É o que se manifesta quando Souleymane, o aluno maliense que mal controla seus impulsos, é levado ao famigerado conselho. Está lá para se defender, mas sabe que não tem chance diante de algo criado contra ele. E a mãe, que não fala francês, está ali para defendê-lo, mas, diante da incapacidade de entender do que o filho é acusado, torna-se impotente também para selar qualquer destino.
São símbolos, significados e significantes, distantes de qualquer entendimento, desde palavras simples que os estudantes colocam na lousa por ignorarem o sentido, porque para eles, afinal, aquele uso é que não faz sentido. Assim como a escola, e assim como aqueles professores - cheios de boas intenções mas que, afinal, também parecem não saber o que fazem ali.

2 comentários:

Fabrício Muriana disse...

Puta texto legal, Matheus.
A ligação direta com o Vigiar e Punir, além da citação do Alienista vem muito de encontro com o que pensei sobre o filme. Naquela instituiçñao filmada ali, eu via as mesmas contradições que a gente encontra no Pinel. São instituições do mesmo tempo e anacrônicas de formas distintas.
Gostei muuuuito do filme. Uma amiga, educadora e professora de história, saiu atordoada. Essa amiga, curiosamente, eu via caminhar pra esse "não saber pra que serve" que você comenta no final. A contradiçñao está no fato de que eles têm e não têm utilidade ao mesmo tempo, numa instituição falidíssima que é a escola.
Enfim, ficar o convite pra cerveja.
Abraço

RR disse...

Li esse post antes de ver o filme. Para comentar, tive mesmo que ir ao cinema conferir. Acho que o que foi dito aqui faz todo o sentido, mas confesso que não foi o que me tocou e chamou a atenção nesse filme. É uma produção surpreendente, muito boa. Estudei em escola pública brasileira e vi ao exatamente aquilo que se passava nas telas. Quando o Muriana diz que a escola é uma instituição falida, tem muita razão. Os conflitos entre alunos são parte de uma mudança social ao qual a escola não sabe lidar. A sociedade não sabe lidar. O que fazer com essa geração bombardeada por MTV e afins? Como educacá-los para a cidadania? A escola, como o filme toca sutilmente, é uma instituição do milenio passado. O comportamento dos alunos mudou e essas mudanças são tratadas como indisciplina. O pânico que meu deu ao fim do filme foi o de pensar sobre o que temos para substituir a escola? Que sociedade teremos sem ela? Não existe resposta. Ou talvez exista e a gente não saiba. É tudo o que está aí e nós condenamos. É o reflexo da ausência da escola que existe, pero no mucho.