quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

de como não me tornei araponga da Abin


O sujeito parecia mais simpático do que de costume, e, assim que me aproximei, me chamou para uma conversa, num tom de assunto reservado. Alto, calvo e sempre suado num paletó em que é obrigado a se enfiar para trabalhar, no restaurante onde almoço todos os dias, o gerente esperou que eu colocasse a sobremesa do dia sobre uma balança viciada para poder tocar no assunto. Levei pouco tempo para escolher os doces – um pedaço de mamão e outro de abacaxi, colocados ao lado de um pedaço modesto de torta de menta coberta com chocolate. O prato ficou um tempo suspenso sobre a balança, que acusou R$ 3,50 – sim, onde almoço a sobremesa também é pesada; logo uma fila atrás de mim começou a se formar, e a extensão daquela conversa passou a me incomodar.
-Você conhece uma menina assim e assim, que sempre almoça aqui?
Demorei a descobrir de quem se tratava. Por que haveria de conhecer?
-Ela trabalha no mesmo prédio que você. Usa óculos de aro preto.
Sim, sabia de quem se tratava e disse que conhecia a menina já há algum tempo. Não contive e, ao dar a informação, perguntei:
-Por quê?
Ele não alterou o tom de voz, e não mostrou qualquer constrangimento para arrematar.
-É que estou querendo...sabe...flertar com ela.
Achei graça na formalidade da expressão, e também com o fato de ele ter procurado a mim para obter informações sobre a menina. Queria imitar a saída de um personagem de um antigo sitcom americano e dizer: “Olha, você poderia aproveitar, chegar nela, e convidá-la para um chá ou um passeio no século 16, quando as pessoas ainda usavam a palavra flertar”.
Mas devo ter inspirado confiança, pensei comigo, e resolvi devolver a confiança, crente de que poderia fazer um bom papel para a humanidade. Resolvi não guardar qualquer segredo que já não soubesse da menina, enquanto a fila do doce se avolumava às nossas costas, e meu prato seguia suspenso na balança, anunciando o fiado de R$ 3,50. Disse que até pouco tempo ela namorava um sujeito bastante gente boa, mas que o relacionamento não fora pra frente; disse também que ela não era de São Paulo, que era uma pessoa bastante agradável, de fácil conversa – rasguei, enfim, elogios à menina, pouco antes de ela aparecer no restaurante.
Vi os olhos do gerente brilharem, e tive a impressão de que ele deixara de ouvir meu relato assim que a viu se aproximar. Foi quando ele tirou meu prato da balança, e colocou as mãos nos meus ombros, suspirando um longo obrigado, como quem acaba de receber, de graça, as combinações da quina da semana.
Na hora de marcar o preço a ser pago da sobremesa, riscou o valor exato e marcou apenas R$ 1,00. Não foi por acaso, dado que olhou ainda para mim com um jeito de quem declara: “essa é na minha conta”.
Irritado, saí do restaurante com esperanças reduzidas de que um dia poderia me dar bem na profissão de informante, araponga ou jornalista. Não cairia bem descobrir, já com um diploma e uma suposta credibilidade em mãos, que uma informação minha não anda valendo mais que R$ 2,50.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

CT da Oscar Freire


Um comentário. Antes de encerrar a semana. Já viram a nova fornada são-paulina, que está em campo pela Copa São Paulo? Logo logo estará no time principal, para fazer companhia a Dagoberto e colegas. (Ver Bruno Uvini, foto não localizada no Google). Dá a impressão de que os olheiros do Tricolor estão selecionando boleiros (sic) no CT da Oscar Freire.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

o Copom, o trânsito, o atraso, o gol


Consegui chegar meia hora atrasado no trabalho hoje. Odeio chegar atrasado no trabalho, a não ser que seja por uma boa causa. Mas hoje cheguei atrasado porque, soube pelo rádio e pela balbúrdia logo à frente, que trabalhadores e banqueiros faziam protesto contra a decisão do Banco Central antes mesmo de o Banco Central tomar a sua decisão. Tripudiavam no meio da rua, no meio da minha rua, sobre uma eventual manutenção da taxa Selic, a malfadada taxa de juros que, dizem, pauta todos os juros de todos os bancos de nossa jurisdição. Atrasado, por meia hora, resolvi tomar o metrô e me atrasar ainda mais; pela manhã, trafegar pela avenida Paulista era quase missão impossível. Horas depois, soube que os camaradas do Copom resolveram enfim cortar 1 ponto, 1 ponto e nada mais da taxa de juros. Respirei aliviado, quando soube, e logo fui comemorar, do meu jeito, com mais vibração até que o gol do amigo Claiton Xavier, feito no mesmo dia, o tão esperado dia da estréia no Paulistão. E, como não tinha dinheiro investido em títulos da dívida pública, poderia comemorar sem culpa: os homens do Copom, o comitê de política monetária do Banco Central, não salvaram o dia, é fato, mas salvaram o futuro próximo, quiçá prospero. Numa canetada, resolveram desafogar o gargalo do setor produtivo e, de quebra, o trânsito da avenida Paulista.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

sexy aos 60




A menina já passou dos 60, e suas pernas são o que nela mais chama a atenção desde pelo menos os 15. Faz o mesmo papel na novela desde que a novela foi inventada; a mesma voz, os mesmos trejeitos. Casou, se não me engano, pela terceira vez, agora com um rapaz mais novo, ex-PM, forte, bonito, baladeiro, cheio de vida, essa que ela sente se perder a cada vela soprada em seus aniversários. É o rapaz que a fez se sentir viva, renovada. Jovem, sobretudo. E que a leva ao centro do picadeiro, um picadeiro cercado de gente faminta de um moralismo revestido: “Vamos ver essa velhinha otária se foder em outro golpe do baú”.
Acendem-se as velas, confirmam-se as previsões, e logo se tem um enredo de sucesso de público e renda – com direito a declaração de apoio da amiga-cocotinha-namoradeira, em programa de culinária, ao vivo e a cores, recriminando o suposto mau-caratismo do camarada que apareceu com a outra, a namorada nova, jovem e linda, no programa da outra-coleguinha-meninota-fofoqueirinha da TV. Se querem sangue, lama ou beijo na lona não é problema meu. Aliás, sou a favor da putaria aos 18, 25, 37 e depois dos 100. Só imagino que um centenário – digamos um Niemayer – deve ter algo a mais a me contar do que o que rabisca dentro das quatro linhas. Mas se escrevo sobre isso é também para confessar: quem não leu a entrevista nas páginas amarelas perdeu uma aula interessantíssima do que é envelhecer em nossos tempos. Tendo vindo das páginas amarelas, dá um tom de importância que as revistecas da vida não conseguiram empenhar. Não foi no site de fofoquinha, mas nas páginas amarelas que aprendi, por exemplo, que “pessoas com deformidade da mente, como ele, transam muitíssimo bem”. Não aprendeu? Então que tal descobrir, também pela revista mais vendida do país, que ele se escondeu atrás da porta do banheiro para filmá-la tomando banho de touca na cabeça, que fazia close das partes íntimas enquanto ela se lavava? Tesão, né? Ou que ele pensou em chantagear, com o material, “uma estrela brasileira, como a Fernanda Montenegro e o Pelé”?
E quem poderia se importar menos? Não sou eu nem é você. A entrevista, de cabo a rabo, é uma demonstração nítida de uma pessoa apavorada, mergulhada em um medo comum apenas a quem expôs a cara ao tapa – não sem qualquer consentimento. É a lógica do reality show, em que de alguma forma todos nós estamos mergulhados, em nossas comunidades, sites de relacionamento, expressão de opiniões ou mesmo neste blog. Esse mundo que desaba quando a gente se abre para ele, e ele mostra que de fato nos quer no chão, com o nariz entupido de pó, sangrando, gritando “pede pra sair”.
O medo de não receber deste mundo os tributos em razão de uma história que só nós, e mais ninguém, damos importância. Nós, autores, atores e roteiristas de nossas próprias vidas expostas, com o pânico de que, a qualquer passo em falso, seremos flagrados – e então todos descobrirão que não somos felizes, realizados, satisfeitos, humildes, belos e revigorados como fazem supor as fotos e legendas infladas pelo photoshop.
O medo de que saibam que fomos trapaceados, que acreditamos em promessas não cumpridas e que, no fim das contas, fracassamos. A reação, instintiva, é convencer a nós mesmos de que somos vítimas, estrelas vitimadas; para isso, é preciso convencer o mundo do nosso convencimento. O que antes se fazia no bar, agora a internet pulverizou. O que é novo, me parece, é que esse medo de envelhecer, de ser passado pra trás, de perceber que não somos mais desejados nem tratados com o respeito que uma suposta celebridade merece, chegou também às páginas amarelas.
A moça, pelo jeito, pirou, e seria apenas uma manifestação de reacionarismo irado atribuir ao orgulho e à vaidade os motivos para isso. O drama pessoal, quando se torna de interesse universal, é o sintoma de que esse pânico de um dia envelhecer e ter de catar os cacos de uma derrota anunciada já bate em nossa porta e ameaça fazer estragos.

sábado, 17 de janeiro de 2009

brasil, o país do futebol alemão


Pronto. A partir de quarta-feira não vou mais precisar me entreter, quando chegar em casa, com jogos de dardos, ludo, xadrez, dama e pera-uva-maça-ou-salada-mista para matar o tempo que me resta de vida. A partir de quarta-feira, terei de volta os jogos do Paulistão. Como no ano passado, começa travestido de empolgação. Corinthians manteve um belo time, embalado, confiante, com moral entre os torcedores que viram no time de Mano Menezes um baluarte da luta contra o atoleiro. O Santos parece mais forte do que há um ano. Trouxe o Lucio Flávio, deve se livrar do Kleber e repatriar o Léo, e tem tudo para resolver a vida com o experiente Roni e o encapetado Kleber Pereira na frente. O Palmeiras chega em queda livre. Mais duas rodadas no Brasileiro e não assegurava vaga nem na Sul-Americana. Mas chega vivo, com esperanças depositadas no Keirrison, mais jovens candidato a craque do país, e na possibilidade de o Diego Souza, enfim, deslanchar e atuar por mais de três jogos seguidos com desempenho pelo menos razoável. Um Diego Souza inteiro, o que o time não teve até agora, é ainda melhor que metade da legião de meio-campistas do país. E, de repente, os meninos recém-chegados, como o Willians e o Marquinhos, podem estourar. Fato é que 2009 já começa com cara de São Paulo. A impressão é que 2005 não acabou, e que desde então só um milagre é capaz de fazer o clube ficar sem taça durante toda a temporada. Ano passado o time, embalado pelo bi no Brasileiro, veio com Adriano e fez miséria. Por pouco não afundou o Palmeiras – não fosse aquele pênalti no Lenny... – e por um segundo não seguiu adiante da Libertadores antes de engatar a terceira marcha rumo ao tetracampeonato. É aí que a história se repete: o time entra sem moral no Brasileiro, vai levando, levando e pá. Até a penúltima rodada já se sabe quem vai ser o campeão. Só que o caldo é montado agora, nessa época do ano. É quando o Muricy junta a tropa de matemáticos e monta a sopa, coloca um pouco de desdém na panela, um tempero de preguiça, põe o brilho, o coração e a empolgação pra secar – e evaporar – e está lá um time pronto pra ser campeão, com direito àquele jeitão blasé do Rogério Ceni, que comemora títulos com a emoção de quem enterra um avestruz no quintal. Azar, claro, dos outros times, que chegam à ponta da tabela com a sensação de quem ganhou uma batata quente pra carregar na mão até a linha de chegada. Na ausência de talento e gana, a que todo mundo anda mergulhado, vence quem não se afoba com a chance de levar a melhor. É aí que chegou e se instalou, germanicamente, o futebol de resultados, sem correria, encanto ou empolgação. É a disciplina do pebolim - ou alguém se lembra de algum grande jogo, uma grande vitória tricolor em 2008? A linha de chegada está longe, muita pedra ainda vai rolar. A empolgação fica para primeiro plano, para a primeira rodada do ano, mas o desfecho está pré-emoldurado. Estamos no país do futebol. O país do futebol alemão. O futebol sem graça, e sem charme. Mas ruim com ele, pior sem ele. E secar também é torcer; mais uma vez, a próxima quarta-feira só acaba em dezembro. E eu mal vejo a hora de começar.
Colaborou K José Eduardo Rondon K (piada interna. chupa, humanidade!)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

artigo interessante





Prometo que não vai se repetir, ao menos não tão cedo. Mas esse artigo, publicado na última quinta-feira no Tendência e Debates, da Folha, está dando o que falar; e tinha que estar aqui, porque é muito do que cheguei a pensar, pensei em manifestar, ou manifestei de forma errada sobre a vida na província, após passar mais alguns dias no interior, tão rico e esquecido. Villa matou a charada, linkou a natureza política com modo de vida e desmando local; jogou, aparentemente sem os preconceitos que marcam a questão, luz sobre uma ferida mal fechada pela gaze. Minha indicação de leitura vale, hoje, mais do que qualquer post que pensei em fazer, por mim mesmo, para encerrar a semana. Segue:




"Viver de província"
MARCO ANTONIO VILLA
Apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB, o interior continua marcado pelo provincianismo
NO FINAL do Império, em meio às turbulências políticas, Júlio Ribeiro -escritor, gramático e polemista republicano- cunhou a expressão "viver de província", nas suas "Cartas Sertanejas". Era uma definição sarcástica do pobre cotidiano político-cultural do interior de São Paulo. Depois de 120 anos, pouco mudou:apesar do grande progresso econômico e de concentrar parte expressiva do PIB brasileiro, o interior continua marcado pelo provincianismo.A inexpressividade política do interior é suprapartidária. Vez ou outra algum grupo tenta ter espaço regional, mas acaba fracassando. O último foi a conhecida "República de Ribeirão Preto", expressão cunhada para designar os aliados do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci, em Brasília.Porém, a denúncia de uso pouco ortodoxo de uma mansão, na capital federal, levou ao naufrágio do grupo, mesmo com a eleição de Palocci para deputado federal. E o interior, para o bem ou para o mal, continuou sem liderança expressiva.A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) poderia ser um palco para o aparecimento de lideranças interioranas. Contudo, das suas atividades pouco ou nada se sabe. Muitos nem sequer imaginam onde, na capital paulista, se localiza o prédio de um dos Poderes do Estado.Dos seus 94 deputados, mesmo os que acompanham a política regional sabem, se tanto, o nome de meia dúzia. O noticiário político prioriza o Congresso Nacional. A Alesp é solenemente ignorada: só é notícia quando ocorre denúncia de um suposto escândalo administrativo.Outra possibilidade seria a ação de alguma administração municipal que se notabilizasse pela inovação. Mas, dos mais de 600 municípios interioranos, quais poderiam ser destacados pela originalidade administrativa?A política estadual concentra-se na capital e, no máximo, na Grande São Paulo. Os líderes partidários que têm presença nacional também atuam nessa região. O interior é marcado pelo situacionismo, pela política do "sim, senhor". Os prefeitos mudam de partido acompanhando a base política do governador. Não têm opinião formada. E os deputados são cobrados pelos seus eleitores para trazer recursos para suas bases, e o preço é sempre apoiar o governo.No campo cultural, apesar do grande número de faculdades e universidades instaladas no interior, não houve mudança. O conservadorismo local venceu a potencialidade transformadora da universidade.Eventualmente professores universitários passaram a participar da política local, mas sempre buscando alguma forma de composição política com os poderosos locais. E, quando necessário, os conservadores utilizaram-se da violência para expulsar os professores indesejáveis, como em São José do Rio Preto, logo após o golpe de 1964, na faculdade local e que hoje é parte da Unesp.Há uma valorização absoluta do dinheiro e um desprezo pela cultura.Em muitas cidades há mais joalherias que livrarias. As políticas culturais são fadadas ao fracasso. O poder público -tal qual a maioria dos eleitores- não tem interesse nas atividades culturais: elas não dão voto e, por vezes, dão problemas.Em Araraquara, depois do espetáculo "Mistérios Gozosos", de Oswald de Andrade, José Celso Martinez Corrêa e grupo foram processados, acusados de "vilipendiar atos e objetos de culto religiosos". O processo foi movido por araraquarenses incomodados "moralmente" com o trabalho de Zé Celso.Uma "atividade cultural" muito conhecido no interior, espécie de marca regional, é o massacre anual de animais conhecido como Festa do Peão Boiadeiro, em Barretos. Como tudo que é ruim, prolifera rapidamente: os rodeios espalharam-se pelo Estado.No Vale do Paraíba, criaram até um rodeio para Cristo, que, certamente, deixaria o Nazareno horrorizado.A maioria dos jornais é subsidiada pelo poder público ou por algum potentado local. O nível das publicações é rasteiro. O espaço da coluna social é várias vezes superior ao destinado a temas políticos.Quando surge uma imprensa independente, os jornalistas passam imediatamente a ser perseguidos e ameaçados. Basta recordar, entre tantos outros exemplos, dos tristes episódios de Marília, que envolveram um conhecido político local e o ataque criminoso às instalações do "Diário".Júlio Ribeiro morreu em 1890, aos 45 anos. Viu muito pouco do Brasil com que sonhou: sem escravos e republicano. Mas o interior não mudou: tal qual no final do século 19, continua impressionando pelo dinamismo econômico e pelo provincianismo.



MARCO ANTONIO VILLA, 52, é professor de história da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor, entre outras obras, de "Vida e Morte no Sertão - História das Secas no Nordeste nos Séculos 19 e 20" (Ática).

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

54 horas de vida


Ganhei uma bolsa para estudar inglês num esquema de superintensivo, desses que começam às 7h e vão até as 10h, de todas as manhãs, de todos os dias, exceto fim de semana, até o final de janeiro. Cruel. Pago hoje o preço por ter desdenhado os cursos de inglês que havia na minha cidade, quando minha cabeça era nova, aberta e arejada, e a chance de algo cair nela e ser fixada era 98% maior do que hoje em dia, quando ela já está entupida de bobagens. Seja como for, já botei na cabeça, e não é de hoje, que não vou fazer, agora aos 26, corpo mole pra aprender algo que já deveria saber de cor e salteado. E a chance me foi dada só agora, então é pegar e não largar. Tenho até melhorado na hora de ler, falar – ok, escrever nem tanto – mas para tentar acelerar o ritmo e chegar, pelo menos até o fim do ano, com o basicão morto e enterrado, resolvi aproveitar a bolsa e encarar a parada. Que deveria começar hoje. Como não sou daqueles que já despertam e caem de pé dentro da calça, resolvi pôr o relógio pra despertar às 6h. Pra dar tempo de fazer meu próprio café, correr a casa, ler alguma coisa enquanto acordo, tomar banho, escovar os dentes. Tudo num ritmo que...bem. Basta dizer que consegui chegar à aula às 7h30, vinte minutos atrasado. Nesse meio tempo, só conseguia elaborar uma única frase em meu inconsciente: “E pensar que essa porra agora vai ser todo dia”.
Fiz as contas, refiz, tirei a prova dos nove, desconsiderei finais de semana, pensei em quando seria o próximo feriado. Tudo pra botar na cabeça que poderia haver refresco em meio a um troço que ameaçava ser um percalço já em sua definição. Não consegui fechar as contas, e no caminho só conseguia pensar em como era minha vida até então, e o que eu trocaria por mais 20 minutos de sono, uma caminhada pelas ruas de manhã, uma horinha a mais para assistir qualquer coisa na TV, ler qualquer rabisco no jornal... Qualquer coisa que não me colocasse, tanto tempo, numa sala fechada. E como meu nariz de cera desenhado acima já deu o que tem que dar, devo dizer, então, que mal contive o sorriso quando, despenteado, sonâmbulo e com olheiras, soube que não estava matriculado para aquele curso. A secretária da escola me avisou assim, já com pena da minha insistência, que não haviam conseguido fechar a turma para o curso da manhã. Só às 18h – horário inviável pra mim. Não sei o que aconteceu na hora da matrícula, mas posso imaginar o que me levou a chegar em casa, meia hora depois, sorrindo, cheio de piadas pra contar, num bom humor que não via em mim desde a Copa de 94, quando o Baggio perdeu aquele pênalti. Me sentia como se acabasse de sair do médico com a notícia de que ganhara mais 54 horas de vida. Ou de sobrevida. Não é sempre que se ganha tanto com tão pouco, e minha vida não anda valendo mais que um relógio de pulso. Em 54 horas poderia ir e voltar seis vezes para Araraquara. Ou poderia assistir a 27 jogos do Palmeiras, sem precisar sair de frente pra TV, e já com o tempo para os comerciais descontados – praticamente metade de uma temporada, mais do que todos os minutos somados em que o Pedrinho, do Vasco, conseguiu ficar em campo em toda carreira. Ou, já abusando da boa vontade, poderia também ver 324 vezes meu vídeo favorito no YouTube, que soma exatos dez minutos, antes de morrer.
Bobagem, eu sei, mas se minha capacidade de fazer conta não estiver tão defasada quanto meu talento pra traduzir Philip Roth para o português, foram as únicas bobagens que, já sóbrio e já conformado com minha sobrevida, consegui pensar. É que na hora não consegui unir matemática com o impulso provocado pela notícia, então não foi difícil imaginar que nesse tempo eu poderia viajar para a Amazônia, pescar com meu avô, me preparar para a São Silvestre ou escrever o livro definitivo sobre a humanidade – tudo isso antes do meu horário de trabalho. Ok, talvez não vá e volte da Amazônia assim numa manhã, mas pelo menos agora tenho algumas horas a mais de sono para pensar em algo melhor pra se fazer até o momento de acordar. Até lá, vou ter que me matricular no mesmo nível, do mesmo curso, da mesma escola, agora no semestral. Mas aí minha morte vai ser, assim, à vista, mas em parcelas e sem juros a pagar.

domingo, 4 de janeiro de 2009

when you were young...


Não é uma boa idéia tomar café num sábado sem muito o que se fazer em São Paulo. Esse “sem muito o que se fazer” coloque-se entre aspas; talvez a expressão certa seja sem muito animo para se fazer tudo o que se tem pra fazer num sábado chocho na cidade. É que alguma coisa está errada quando você vai até o cinema pra tomar café, e só tomar café (minha namorada não animou de assistir ao “Gomorra”, de Matteo Garrone, único filme disponível àquela hora do dia, e voltamos para casa). Às 22h, por conta do café, não tinha santo que nos fizesse pegar no sono, então aproveitamos que meu irmão anda gravando em DVD a torto e a direito tudo o consegue baixar no computador, e fomos ver o “Reflexos da Inocência”, produção britânica do diretor Baillie Walsh que já havia assistido no cinema. Filme nota 7,5, no máximo, e com a tradução do título original (“Flashback of a Foll”) que, em português, dá a entender que estamos diante de um título tipo "Brasileirinhas" em cujo enredo alguém perdeu a virgindade precocemente, conforme comentou o amigo Fernando Vives. Poderia, depois dessa, nunca mais querer saber do filme; mas algo ali me fez parar e pensar e rever muitas das coisas com as quais me deparei em tempos recentes. Perguntas do tipo: quem era eu antes de decidir ser quem eu sou? Em que momento tomei o caminho certo ou errado? O que me levou a isso? Foi algo provocado? Se sim, por mim ou por imposição? Foi acidente? O que eu disse na hora errada? O que deixei de dizer? É possível consertar? É possível refazer o caminho? Se houve erro, é justo o preço a ser pago? Afinal, há preço a ser pago? Já disse que o filme é nota 7,5 (muito por conta de um certo moralismo que deixa escapar), mas se despertou em algum momento alguma dessas perguntas, sem dar como alternativas as respostas A, B, C, D ou NDA, é porque algo havia em comum entre a vida deste espectador e a do menino que desde cedo é colocado diante de escolhas que mudarão não só a sua mas a vida de todos à sua volta. O caminho é um só, mas os desvios (representados pela vizinha casada e ninfomaníaca que o tirava da trilha certa do que – ooooh pieguice safada – o coração parecia ditar) podem levá-lo a um destino sem volta. Uma tragédia durante uma dessas entregas faz com que aquele menino quase bobo, inocente e assustado com as ofertas do mundo real se transformasse no tolo de fato, ególatra, viciado e solitário, embora bem sucedido (e em decadência) ator de Hollywood (clichezão-ponto-baixo-do-filme). Mas ao menos uma cena (http://www.youtube.com/watch?v=ZBZBP2cl2zM), quando a linda personagem de Felicity Jones finalmente convida o jovem Joe para passar uma noita em sua casa, para se vestirem como seus ídolos, beberem, cantarem e dançarem longe dos olhares inquisidores dos pais, já nasce clássica, assim como a parte final, quando a história se cruza e volta a um entroncamento que leva cada qual a ocupar os espaços que foram tomados nos últimos 25 anos. E a revisar cada passo em seu devido lugar.
É essa coisa adolescente, das descobertas, da infração das regras, do esperar a viagem dos pais e a casa vazia; de penetrar as áreas não permitidas da casa, de ouvir os sons que nos carregam para a transgressão (neste caso, Bowie e Roxy Music), de assumir posturas por si; de se fantasiar e fechar os olhos e fingir transgressões maiores, ainda que fora do alcance; é essa coisa adolescente, bem contada, que faz do filme inesquecível, apesar dos 7,5 dados ao léu pela irregularidade. A música-tema – “If There is Something”, de Roxy Music – tem boa parte nessa cota, porque não poderia haver outra melhor para impulsionar tudo isso que um dia se tentou transmitir. Lift up your feet and put them on the ground/ You used to walk upon (when you were young)… É a mesma sensação de que essa inocência, uma vez quebrada, nunca mais voltará ao lugar; no lugar dela, só a lembrança e o peso que sua dimensão impõe ao longo dos anos. E a certeza de que nada mais está ao alcance das mãos, quando vista desse ângulo. Essa nostalgia, depois da morte, é a mais triste das saudades.

os iluminados


Enferrujado e desacostumado a ficar em silêncio ou sem internet, aproveitei o final da manhã de hoje pra ler, de uma patada, a segunda metade de “O Exército Iluminado”, de David Toscana, escritor mexicano que até há pouco só sabia por ouvir dizer. A primeira metade me levara duas semanas para ser lida, sem que houvesse motivo especial (ou falta dele) para minha apatia. Mas o tempo fechado, e a manhã que parecia de outono hoje em São Paulo, com um vento que logo me lançou de volta ao cobertor, me levaram por impulso a voltar à missão, com uma concentração que não havia encontrado nos últimos dias. Resultado: em pouco menos de 200 páginas, consegui perder a conta de quantas vezes tive de fechar o livro para rir. Rir rir mesmo, como se estivesse assistindo a algum episódio de Monty Phyton, uma das poucas coisas que me fazem ter dor de barriga quando vejo. A história, em si, já vale a entrada. O livro conta a história dos surtos protagonizados por Ignacio Matus, um professor nacionalista frustrado e amargurado por colecionar desaforos e desautorização de alunos décadas mais jovens que ele. Desafortunado também por jamais ter sido mandado para uma Olimpíada para testar seu talento como maratonista. O jeito é simular trajeto similar, em sua Monterrey, para competir, a milhares de quilômetros, com os maratonistas que disputavam a prova oficial em Paris, em 1924 – por ter finalizado a sua prova particular com tempo pior apenas aos do primeiro e segundo colocados, passa parte da vida cobrando, por direito, a medalha de bronze e a condecoração que o anonimato lhe negara – e fora brotar no peito de um competidor americano. Cansado de desaforos, resolve, um dia, reunir uma turma de jovens com problemas mentais, coloca todos numa carroça, e parte em direção ao Norte para empreender uma inglória missão: tomar o Texas dos Estados Unidos e anexá-lo ao território mexicano. O moinho da vez é o Exército americano, além do desafio de motivar uma tropa que baba, dorme, surta, ouve vozes, confunde qualquer córrego com o rio Bravo e, já a caminho da empreitada, ainda precisa descobrir se é preciso matar uma legião inteira para se vencer uma guerra. O esforço para se entender as alegorias (o sectarismo do espírito antiamericano? a bravura de quem se sujeita a contestar a ordem dominadora? a morte do bom senso em meio às omissões? a releitura, pós 11 de setembro, de ataques terroristas armados contra alvos nem sempre bem escolhidos? o uso de inocentes para missões tampouco insanas?) vale menos do que a experiência de se ter à frente uma bela história, e muito bem escrita. É uma espécie de “Incrível Exército de Brancaleone” em letras, que lembra as tiradas de um Luis Fernando Veríssimo, mas com a imaginação fantasiosa de um Juan Rulfo em dias atuais – aliás, é incrível como tudo no México parece ter uma herança dele em algum canto, talvez até mais do que as pegadas machadianas no Brasil. Pena que minha primeira grata descoberta do ano me foi apresentada com atraso, e ainda assim graças a uma inesperada inversão térmica que me manteve na cama neste primeiro domingo de 2009.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

o natal de 92


Fico com o espírito dilatado quando vejo chegar dezembro, mas devo confessar que já sinto falta do ritmo normal de pressão e temperatura dos dias em que todos, obrigatoriamente, devem estar de pé pra fingir que arrastam as bolas de ferro e algemas presas ao tornozelo da economia do país. Sinto falta de ver coisas funcionando ou qualquer coisa que não sejam suspiros ou votos de bom tudo o que exista. Nada contra os bons sentimentos, mas troco qualquer um deles pelos jogos de quarta-feira na TV (para quem não sabe, estamos em recesso de futebol). Passamos dois meses cantando vivas à paz, à bondade, à fé e à esperança, ao tempo em que Israel estraçalha a Faixa de Gaza, e nós, do Amapá ao Rio Grande do Sul, temos que juntar os cacos de esperanças que se cristalizam, a partir do dia 1º, com os mendigos jogados pelas ruas – em parcos minutos de caminhada até o trabalho, hoje, pude conferir alguns empapados pelos próprios vômitos, jogados ao léu, à espera de um Ano-Novo que não virá. Não foram chamados às ceias das duas últimas semanas.
Dessa vez pelo menos posso dizer que me escusei a participar de movimentos e correntes como as brincadeiras de amigo-secreto de todos os anos, com exceção das que fazemos em família. Não tenho boas lembranças dos amigos-secretos, e penso que isso começou na festinha de final de ano que fizemos em Araraquara, em alguma data de dezembro de 1992 (disso eu lembro). Estudava em escola pública, e convivi durante um tempo com pessoas que mal podiam pagar a condução ou o caderno para tomar as notas do que os professores expunham no quadro negro. O Fábio, um amigo tímido e descabelado da classe, fora chamado para participar da festa, que seria realizada no fundo da sala, nos últimos minutos das últimas aulas. Mas me confessara, antes do sorteio do amigo-secreto, que pensava em cabular a aula justamente no dia combinado. Até queria tirar os papéis, como o fez, mas adiantou que fatalmente daria o balão no dia da entrega dos presentes. O motivo: nem ele nem sua mãe (era órfão de pai) teriam um puto pra comprar qualquer coisa que os meninos do centro (como éramos chamados) iriam adquirir com facilidade com a ajuda dos pais. Já contava com seu sumiço, e já nutria uma pena fodida do camarada quando, sem me avisar, ele resolveu aparecer no dia, com uma garrafa de guarajá e pedaços em fatia de um bolo cujo gosto não me vem à mente a não ser como uma iguaria amarga pelo sacrifício. Trazia também um pacote nos braços, pequeno, mal fechado em papéis coloridos. Soube naquele dia que a idéia de furar a festa para não dar de cara com gozações fora abortada quando, ao desembrulhar o papel, dias antes, leu meu nome como seu amigo secreto. E, no dia combinado, em frente da sala, foi preciso pedir que ele repetisse mais de uma vez o meu nome quando chegou sua vez de anunciar o seu amigo. O anúncio veio quase num sussurro, que escondia uma vergonha por ter, em toda a sala, o menor pacote entre os colegas. Fiquei de tal forma incomodado com a situação que me esqueci de abrir o presente na frente dos colegas, como que a poupá-lo do constrangimento de dizer: “foi o que pude comprar”. Abri, num canto, e me deparei com uma coleçãozinha de carrinhos de plástico, longe de ser minha preferência, numa época em que crianças queriam ganhar bonecos (os hominhos) que falavam e rodopiavam e se explodiam em terrenos inimigos desenhados pela Estrela, potência entre fabricantes de brinquedos naquele tempo. Abri o pacote, senti um aperto no peito que só me vêm à lembrança quando é época de Natal e amigo secreto (tudo começou alguns anos antes, por conta de uma história que vale a pena ser contada um dia desses). O Fábio deixou a sala e foi chorar num canto. Eu e outros amigos fomos até ele. Não me lembro do que falei, só sei que me custou um esforço monstro pra tentar convencê-lo de que, sim, eu havia gostado do presente e que ele não precisava se preocupar; mas aquele papo de que o que vale é a intenção me entregou de uma forma que o remendo ficou pior que o estrago. Não lembro quando foi o momento em que o Fábio parou de chorar, nem posso ter certeza que ele o deixou de fazer um dia. Mas aquele choro, àquela altura, era de todos nós: naquela manhã, aos 10 anos, começávamos a nos dar conta e a nos incomodar por dar passos cada vez mais largos rumo às crueldades incrustadas nas convenções do mundo adulto.

o dia do bode ou uma outra forma de se desejar feliz ano novo


O ano é do boi, mas o dia é do bode. De longe, o 1º de janeiro é a data mais tediosa e mais solitária da humanidade. Diria odiosa. É possível encontrar pessoas em cemitérios em dia de finados, ou observar crianças correndo nas ruas e praças com seus brinquedos recém-adquiridos nos dias 26 de dezembro de todos os anos. E a quarta-feira de cinzas, pelo menos no Brasil, há muito não é de cinzas; o povo puxa, estica e leva o Carnaval até o domingo da semana que acaba, varrendo a ex-cinzenta quarta-feira com ela. E a sexta-feira santa é fúnebre, mas há vida dentro das igrejas e cinemas, ainda que escuras. Mas 1º de janeiro é o dia do abandono. Fácil que é. Não tem propósitos, a não ser os que foram feitos na véspera, durante a virada, quando meio mundo começa a elaborar planos, mudanças, reajustar sonhos. Que serão, muitos, colocados em práticas de fato – mas só a partir do dia 2. Ficamos nessa; os que beberam, já acordam com gosto de ressaca na boca – uma bela forma de se começar o ano. Os que não beberam, sentem um outro tipo de ressaca, a moral, dependendo dos estragos do ano anterior. É a hora que se pensa: “mas já? Nem acabamos 2008 e já falamos de 2009?”
Dia 1º de janeiro é o dia da preguiça. O dia da saudade a que se referia Raul Seixas sem citar nomes nem datas precisas. (“Hoje eu vou beber para celebrar o aniversário do seu Gaspar...Hoje é feriado é o Dia da Saudade...”). Até o Carnaval, estamos condenados ao purgatório; mas o dia 1º é o inferno dito e feito, faça chuva ou faça sol. Não vejo lojas nem bares nem supermercados abertos. Fosse qualquer feriado, em qualquer dia da semana, mês e ano, e posso sair de casa a hora que for; posso sentar a qualquer hora em qualquer mesa do Asterix e encontrar repouso e abrigo. Se der fome, tenho o Black Dog, aberto 24horas. Mas não no dia 1º, dia em que não vejo ônibus e que o metrô dá a sensação de que só voltará a circular na próxima Copa do Mundo. Se um dia os senhores me elegerem deputado, essa será a primeira proposta a ser apresentada pela minha pessoa à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara: acabemos com o dia 1º de janeiro. Nesse dia não circulará ônibus, jornais e ninguém sairá de casa. Porque esse dia deixará de existir. Vamos emendar a data: beber às farras no dia 31 e acordar no dia 2, prontos pra começar de novo, e contando com todas as padarias, cafés, bares, livrarias e cinemas com as portas abertas. Só assim será permitido desejar aos senhores um feliz Ano-Novo sem a desculpa de que o jogo só começa após a quarta-feira de Cinzas. Essa que nem sequer existe mais.