quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

o natal de 92


Fico com o espírito dilatado quando vejo chegar dezembro, mas devo confessar que já sinto falta do ritmo normal de pressão e temperatura dos dias em que todos, obrigatoriamente, devem estar de pé pra fingir que arrastam as bolas de ferro e algemas presas ao tornozelo da economia do país. Sinto falta de ver coisas funcionando ou qualquer coisa que não sejam suspiros ou votos de bom tudo o que exista. Nada contra os bons sentimentos, mas troco qualquer um deles pelos jogos de quarta-feira na TV (para quem não sabe, estamos em recesso de futebol). Passamos dois meses cantando vivas à paz, à bondade, à fé e à esperança, ao tempo em que Israel estraçalha a Faixa de Gaza, e nós, do Amapá ao Rio Grande do Sul, temos que juntar os cacos de esperanças que se cristalizam, a partir do dia 1º, com os mendigos jogados pelas ruas – em parcos minutos de caminhada até o trabalho, hoje, pude conferir alguns empapados pelos próprios vômitos, jogados ao léu, à espera de um Ano-Novo que não virá. Não foram chamados às ceias das duas últimas semanas.
Dessa vez pelo menos posso dizer que me escusei a participar de movimentos e correntes como as brincadeiras de amigo-secreto de todos os anos, com exceção das que fazemos em família. Não tenho boas lembranças dos amigos-secretos, e penso que isso começou na festinha de final de ano que fizemos em Araraquara, em alguma data de dezembro de 1992 (disso eu lembro). Estudava em escola pública, e convivi durante um tempo com pessoas que mal podiam pagar a condução ou o caderno para tomar as notas do que os professores expunham no quadro negro. O Fábio, um amigo tímido e descabelado da classe, fora chamado para participar da festa, que seria realizada no fundo da sala, nos últimos minutos das últimas aulas. Mas me confessara, antes do sorteio do amigo-secreto, que pensava em cabular a aula justamente no dia combinado. Até queria tirar os papéis, como o fez, mas adiantou que fatalmente daria o balão no dia da entrega dos presentes. O motivo: nem ele nem sua mãe (era órfão de pai) teriam um puto pra comprar qualquer coisa que os meninos do centro (como éramos chamados) iriam adquirir com facilidade com a ajuda dos pais. Já contava com seu sumiço, e já nutria uma pena fodida do camarada quando, sem me avisar, ele resolveu aparecer no dia, com uma garrafa de guarajá e pedaços em fatia de um bolo cujo gosto não me vem à mente a não ser como uma iguaria amarga pelo sacrifício. Trazia também um pacote nos braços, pequeno, mal fechado em papéis coloridos. Soube naquele dia que a idéia de furar a festa para não dar de cara com gozações fora abortada quando, ao desembrulhar o papel, dias antes, leu meu nome como seu amigo secreto. E, no dia combinado, em frente da sala, foi preciso pedir que ele repetisse mais de uma vez o meu nome quando chegou sua vez de anunciar o seu amigo. O anúncio veio quase num sussurro, que escondia uma vergonha por ter, em toda a sala, o menor pacote entre os colegas. Fiquei de tal forma incomodado com a situação que me esqueci de abrir o presente na frente dos colegas, como que a poupá-lo do constrangimento de dizer: “foi o que pude comprar”. Abri, num canto, e me deparei com uma coleçãozinha de carrinhos de plástico, longe de ser minha preferência, numa época em que crianças queriam ganhar bonecos (os hominhos) que falavam e rodopiavam e se explodiam em terrenos inimigos desenhados pela Estrela, potência entre fabricantes de brinquedos naquele tempo. Abri o pacote, senti um aperto no peito que só me vêm à lembrança quando é época de Natal e amigo secreto (tudo começou alguns anos antes, por conta de uma história que vale a pena ser contada um dia desses). O Fábio deixou a sala e foi chorar num canto. Eu e outros amigos fomos até ele. Não me lembro do que falei, só sei que me custou um esforço monstro pra tentar convencê-lo de que, sim, eu havia gostado do presente e que ele não precisava se preocupar; mas aquele papo de que o que vale é a intenção me entregou de uma forma que o remendo ficou pior que o estrago. Não lembro quando foi o momento em que o Fábio parou de chorar, nem posso ter certeza que ele o deixou de fazer um dia. Mas aquele choro, àquela altura, era de todos nós: naquela manhã, aos 10 anos, começávamos a nos dar conta e a nos incomodar por dar passos cada vez mais largos rumo às crueldades incrustadas nas convenções do mundo adulto.

2 comentários:

Anônimo disse...

caro amigo Matheus, criei um blog ha pouco tempo e mandando alguns scraps sobre uma comunidade tambem minha, me deparei com seu blog.
li seu ultimo post, e em nisso pensamos da mesma maneira.
Tambem acho o ano novo uma puta invencao pra fazer as pessoas comprarem.. venderem... e acharem que ao mudar o calendario, tudo sera novo... bonito e azul...

balela...
nada muda... tudo continua o mesmo.
hipocrisia desgraçada...

nem regimes, nem bondades, nem pensamentos positivos resistem muito tempo depois do dia 31 de dezembro...

quanto mais o tempo passa, mais creio que a mudança de verdade, só pode vir nos outros 364 dias do ano.


iuri ribeiro

Cris disse...

Pesado seu texto e sua experiência.
Essas coisas da infância marcam a gente à beça.
No seu caso, que bom que marcou. Porque soube, desde cedo, valorizar a amizade mais que o status ou o preço das coisas.
Virou esse "menino bão".

Também estudei em escola pública durante o ensino fundamental e também era "do centro", embora esse não fosse o apelido lá pras bandas de Beagá. Também tive um amigo, filho de padeiros, que chorou um dia porque não poderia participar do amigo oculto da sala.
Também me marcou.

Se hoje sou melhor por ter passado por todas as minhas experiências em escola pública, não sei, mas certamente colocarei meu possível filho em uma dessas.
Preciso colocar alguém no mundo - se o fizer - que conheça a vida desde pequeno, que sinta o murro no estômago e o amargo na boca descritos por você. Para que não só sobreviva às "crueldades do mundo adulto" como possa contorná-las e amenizá-las na medida do possível, seja em qual profissão venha a se meter.

Hoje você não só é jornalista e pode usar seu trabalho para amenizar alguns problemas, como também é uma pessoa que repara nos mendigos empapados no próprio vômito em dia de Réveillon. Mendigos que parecem ter se tornado paisagem para a maioria dos moradores desta cidade, mas com os quais não consigo me acostumar (e espero não conseguir nunca).

Apesar de tudo isso, não consigo fugir do meu encantamento pelo espírito festivo dessa época do ano, que acho que atinge a todos, de todas as camadas sociais. Ingenuidade, tolice, etc, eu sei. Mas é que sempre leio "Conto de Natal" e "Milagre na rua 34", todo ano, pra renovar minha fé nesse tal "mundo adulto", que agora me pegou e não largará jamais, infelizmente.

[Nuh, escrevi um testamento! Foi mal! Té a próxima!]