segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

anos 80


A música está em algum canto, e quando a inventaram eu era mudo, não sabia ainda o que significavam as palavras nem os ditos e os desditos que sua natureza inspirava. Inspirava ao girar num disco compacto, de lado A e lado B, com o selo da Aple. Se no início era o verbo, pronome ou sobrenome não sei; o que me lembro é que ecoavam como vozes roucas, sem cores ou amores inusitados. Era uma sala escura, de paredes beges e cortinas pesadas; era preciso girar uma manivela para abri-la e fizesse alguém de dentro entender um pouco do mundo afora. E havia um computador, ainda a ser inventado; enorme como a pretensão. E a pretensão era que tudo permanece como estava. E as pessoas usavam vestidos, cabelos empinados. E tudo era cinza. Cinza como a música que tocava em um rádio mal projetado, enorme, grande como a pretensão. O chão era denso e escuro e tudo parecia escuro naquela sala, naqueles anos. Escuros como a invenção do que se anunciava. Qualquer claridade era nova, e o novo era fazer ficarem claros todos os planos que um dia deixaram de ser feitos. Claros como panos que se penduravam nas portas e guiavam as mulheres que nos levavam para benzer. Eram cheiros comuns, cheiros metálicos; mas a hortaliça estava de pé, num canto, numa época em que o canto era sagrado. Vieram as novas, as invenções, e o quarto de TV deixou de parecer algo inventado; tornou-se comum ouvir aquelas vozes – aquele boa noite que só Cid Moreira sabia inspirar. Estávamos escondidos. Desconectados. Até que alguém apagou a vela e acendeu o fio. E clareou, clareou como nos tempos em que não havia salas nem quartos nem hortaliças. Mas clareou porque tinha que clarear e não porque alguém da sala pedia luzes. Na sala o que pediam era apenas mais um copo. Um copo de lamento e outro de cólera. Naqueles anos inspirados e perdidos.

sábado, 6 de dezembro de 2008

e sua mãe também


Faz um sol sacana lá fora, mas dele só sei por ouvi dizer. Nos encontramos, de esbarrão, a caminho da aula e, depois, em direção ao plantão. Estava em algum lugar acima do teto do ponto de um ônibus que me custou 30 minutos a menos de vida. É sábado, e como todo sábado há muito que se fazer em qualquer lugar do mundo que não seja onde estou. E é final de ano também. Todo mundo falando sobre viagens, bagagens, paisagens, encontros, reencontros, desencontros e descansos...E o que me ocupa mesmo é saber o que vou fazer, daqui a 15 dias, quando puder ver o sol mais de perto. Vem na cabeça aquele filme mexicano, “E Sua Mãe Também”, de Alfonso Cuarón. Filmaço, de 2001, que descobri há pouco, sobre humores adolescentes em dias de sol radiante. Se alguém não viu, vai o resumo, mal e porcamente resumindo: dois moleques mal saídos da adolescência, hormônios à flor da pele, rasgam os dias pensando no que vão fazer durante o verão, na Cidade do México, depois que as namoradas viajam para um intercâmbio na Itália. Não demoram e se metem numa encrenca, após, numa festa em dia de sol e calor, convidarem a espanhola Luisa (Meribel Verdú), mulherão e esposa do primo de Tenoch (Diego Luna), que acabam de conhecer, para uma viagem a um lugar imaginário, de nome “Boca do Céu”. Não que para uma mulher deva ser fácil recusar o convite de um Gael García Bernal, ainda menino no papel de Julio, para a praia; mas o que a leva à viagem para um lugar que ninguém sabe onde fica é guardado só para o fim. Até segunda ordem, ela é impulsionada pela revelação de que o marido, o protótipo do bom moço careta e escritor bem sucedido, anda aprontando com cada par de pernas que corta sua frente. Pernas que não são as dela, diga-se.
O caldo está formado. Uma mulher de certa idade, linda como aquele sol, excitada pela idéia de cruzar um país desconhecido, de carro, com dois meninos capazes de engolirem terra só para ver de perto uma cruzada de pernas sua; e disposta a mergulhar na experiência mais libertária contida na bagagem de onde não faltam drogas, bebidas, cigarro e putaria. A partir daí não conto mais. A idéia de montar um road movie e fazer com que personagens e público se descubram enquanto percorrem lugares desconhecidos, sem um rumo definido, pode não ser nova – exceto o tempero ali, uma cena picante lá (mais instigantes que qualquer filme pornô) e a idéia de que liberdade, quando alcançada, cobra seu preço, o preço da descoberta; e a descoberta, antes do que se deparar com algo novo, é dar de cara com algo que já foi feito e não nos foi contado. Descobertas que não passam imunes na vida dos três, e arrebentam com força qualquer história de fidelidades e princípios construídos até ali. O filme é, antes de qualquer coisa, a história do que se esfacela entre tabus que caem, um por um, até minarem uma amizade, consumida pela revelação do velho, do que foi feito à revelia; e quanto mais tempo junto, mais próximo, mais cru, maior a sujeição às descobertas; mais perigo pela frente.
Hoje é sábado, faz sol e o calor deve estar, uma hora dessas, rachando histórias em praias imaginárias para onde dirijo meu pensamento desde muito cedo. Ser livre deve ser algo como a história daqueles moleques: correr por aí, sem plano ou reticências; só armado de inconseqüência e (más) intenções. Escrever tudo isso é só uma forma de me consolar: estou trancado, é verdade, mas desse quarto, a quilômetros e quilômetros da praia mais próxima daqui, posso guardar, intactos, meus segredos mais reveláveis ao primeiro sinal de sol...

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ah, antes que me esqueça


não sei mais falar de política nem de economia (na verdade nem sei se posso), e descobri, antes tarde do que nunca, que era um saco pagar de ombudsman toda vez que lia algo nos jornais que me tocava. Do outro lado do balcão, a idéia agora é resmungar menos no atacado e mais no varejo. Seja lá o que isso significa - sempre confundo atacado com varejo, mas quando uso essa expressão sinto que estou falando algo com certa autoridade. E autoridade se conquista no atacado e no varejo.
Mas não era isso o que eu ia dizer.
O que eu ia dizer é que não tenho pauta nem assunto específico para usar aqui. Se for pra ser desonesto, vamos ser desonestos desde o começo. Penso em falar de cinema, quando for ao cinema; e de livros, quando ler algum que valha a pena; fora isso, a idéia mesmo é fazer o que o Melhores Manchetes já faz, só que em mais caracteres (já viram? é de rolar de rir: http://melhoresmanchetes.blogspot.com/). Ouvir e recontar histórias, tenham elas existido ou não. Tenho fama de aumentar um terço a história que conto - quem inventou isso foi o Leandro, o Beguoci, não sem um certo toque de razão. Juro que, no trabalho, consegui zerar o terço aumentado com a ajuda das interceptações telefônicas e bloco de notas, mas aqui o que ficar dito entre nós é, na verdade, um ode ao outro terço que também é filho de Deus. Fechô?

agora o novo


Meu primeiro blog, também chamado Margem de Erro, entrou em coma no final de 2006, quando um ritmo incessante de trabalho me levou a visitar o espaço virtual só de quando em quando e ainda só para publicar raspas de tacho sobre política mal compreendida. O blog ficou chato, se já não o era, e não demorou para começar a respirar por aparelhos. Morreu, oficialmente, em janeiro de 2007, mas seu corpo passou a ser vilipendiado por mim vez ou outra, quando me arrependia de algo que havia escrito, acessava-o e guilhotinava a gordura que não me agradava mais.
O blog foi ficando mais magro, até que deixou de me incomodar. O corpo está lá, estendido na web, pra quem quiser ver e conferir, no jazigo da quadra margem.zip.net. Só que a vontade de escrever e ter um espaço pra cuidar não se mata tão facilmente; era afogada, vez ou outra, por um golpe de vinho e uma sentença: “quando estiver sóbrio, amanhã, escrevo”.
Era, no fundo, insegurança por não saber mais por que escrever nem o que esperar de qualquer escrito. Mas a idéia de uns amigos, cujos blogs, reeditados ou não, seguem vivos e sadios, de juntar tudo num só condomínio me deu a segurança e companhia que precisava pra topar de novo com essas perversões cibernéticas.
Juntou a fome com a vontade de ser lido – gostava, é verdade, de receber mensagens, visitar outros blogs e ouvir o que tinham achado das idéias; isso quando a moda estourou, lá no distante (quem diria?) 2004.
Gostava até de alguns escritos que ficaram pendurados por ali, como estes que compilei aqui embaixo, pra me provar que não eram assim tão ruins. E pra lembrar velhos e não menos amargos tempos (agora adocicados pela distância), pra forrar este novo e dar o pontapé que precisava pra fazê-lo (re) nascer. Nasceu. Espero que não chegue com o velho ranço, nem com a sobriedade que fazia os mais sisudos enrugarem a testa diante da pretensão.
Taí. Escrever também é ser lido, e é botar no papel (ou na tela) idéias que me acendem como pisca-pisca e desapareceram em meio a cansaço, compromissos e a preguiça nos últimos quase dois anos. Mas é também rever, reler, relembrar, rir de novo, e saber como o erro – exatamente igual – seria contado agora, com menos temperos, mais vivência e menos inspiração.
Bato um rolo que não dura três semanas.

ainda Rosa


Tomei em mãos umas latas de tintas e alguns restos de papéis. Com os dedos, lancei-me ao teor da conversa. Rabisquei em módulos vastos a exigência que me ditavam. Conferi, a sério, as últimas gotas de orvalho. Lancei, mais tarde, a roda do mundo. Converti-a em deusa dançante, vistosa e danificada. Fragilizada em cortornos de amplitude e solidão. Essa rosa não presta, contou-me o ocaso. Mesmo assim, insisti na ilusão. Pincelei as bordas de dobras branquelas, as cores de mares e escuridão. Conferi em seus olhos os toques famintos. Eram graves seus dias de samba e sertão. Dos lábios, desceram agrestes. Cientes de mortes, invadiram a terra. Cortaram sinais. Desviados, caçoaram de mim; disseram serem dignas as diginidades somente reinantes. Erraram os errantes? Pois que assim seja. Antes do esquecimento, a voz se ampliara, confusa, irrequieta. Que fazes enquanto medes o pulso do que não resta? Meu Deus, eu que mal pude ouvir. Novamente tilintando. E, surdo, não conferir o discursos silencioso da veia aberta e varada.
-Quieto, João. Essa rosa não presta.

ainda Raul

Parece sina de artista sexagenário: mal é pago o ingresso para entrar nos bailes da terceira idade, e eles perdem de vista qual adjetivo devem carregar ao lado seus nomes. Raul Seixas não é diferente. Cantor, roqueiro, compositor, autor de peças, escritor. As denominações são muitas, mas poucas abrangem com exatidão o significado de seu sujeito. Para muitos, não há até hoje melhor designação a ele do que, simplesmente, artista. Tal confusão ganhou um agravante em 1995, quando Raulzito lançou seu primeiro livro, "A Saga de um Louco Varrido". O romance – para muitos, o mais autobiográfico de sua obra – rompeu todas as fórmulas de best sellers até então vigentes: mesmo tendo conquistado de imediato o público, ganhou todas as menções honrosas da famigerada crítica. Assim como seu companheiro, Chico Buarque – que também recentemente completou 60 anos –, Raul ganhou com os livros ares de notoriedade. Ficou difícil, a partir de então, chamá-los simplesmente de cantores ou somente escritores. Mas, diferentemente de Chico, Raul Seixas nunca militou tão fortemente na produção musical como nos dias de hoje. Seus livros apenas o alçaram para um campo onde ficou provado: da alquimia entre maluquês e lucidez, sempre nasce um estranho e incontestável eco de genialidade. Seja em que área das artes isso aconteça. Com 63 primaveras completadas em 28 de junho e após transitar pela literatura, logo que largou de vez a bebida, Raulzito decidiu tirar o pó da guitarra. Afinou-a, subiu ao palco e deixou os fãs – hoje unidos em primeiras, segundas e terceiras gerações – com a certeza de que o rock nacional nunca colheu tão bons frutos como em 2005.
Neste último CD, "Visita a Al Capone", o Maluco Beleza fez de tudo. Voltou às origens ao misturar solos de guitarra com toques de baião; usou e abusou da velha ironia em "Que País Tu me Guardou?"; flertou com partido alto e ainda fez pose de rapper na dobradinha com MV Bill em Moleque da Zona Sul. O público foi ao delírio e a crítica, mais uma vez, se rendeu. O detalhe: todas as faixa do CD foram gravadas em seu estúdio particular, na chácara Samba (Sociedade Alternativa Maluco Beleza), em Salvador, sua cidade natal, para onde se mudou ao término da Copa de 1994. “Foi promessa: lancei com Marceleza [Marcelo Nova]: se o Baixinho levar o caneco nos Estados Unidos, saio do Rio e volto pra Bahia. Não dava nada para aquele time... Mas me ferrei...Pra tu ver que, com futebol, a gente não brinca, não”, relata, sem perder o humor. Na chácara Samba, Raul não faz distinção das visitas: recebe fãs, saudosos, curiosos e – pasmem – jornalistas. Sem que para isso seja preciso marcar horário em sua agenda. Com as barbas brancas e o cabelo até a altura da cintura – muito parecido com o personagem da capa do LP “Há Dez Mil Anos Atrás”, de 1976 –, Raul garante: virou um avozão careta das mais de 300 crianças carentes que recebem na chácara Samba aulas de música, pintura e literatura. Ali, todo fim de tarde, o cantor-compositor-escritor senta-se na varanda com a criançada, pouco antes do jantar, para cantar alto o trecho de uma de suas mais simbólicas frases sobre a esperança: “Todo jornal que eu leio, me diz que a gente já era, que já não é mais primavera, oh, baby, oh, baby: a gente ainda não começou!”.
Lágrimas nos olhos, todos garantem ver ali um novo ânimo para topar a rotina. No último Natal, o projeto Samba ganhou menção honrosa da ONU como patrimônio da humanidade, o que fez vazar boatos de que Raul seria o favorito para ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 2009. A biblioteca do local tem hoje 5.000 exemplares, número que promete dobrar até o ano que vem a se observar o ritmo das doações. “Sabe como é que é: não adianta a gente ficar berrando e gravando CD botando bronca na guerra se não fizermos a revolução por nossas mãos", diz.
O personagem, que já brincou de escrever livros e fazer música, não abriu mão da irreverência ao fim desta entrevista. Perguntado se preferia ser chamado escritor ou compositor, ele não hesitou em responder: “Bota aí que eu sou mesmo é ator. Sou tão bom ator, tão bom ator, que finjo ser cantor, compositor e literato e todo mundo acredita”.

ainda a milésima segunda noite




A primeira bomba estourou alto, na última meia hora de 14 de julho - ano 2005, quando se celebrava o 216º aniversário da Queda da Bastilha, aquele passo de revoltosos franceses que dera fim às regalias do rei Luis XVI. Inspirado por vozes premonitórias, vossa majestade talvez não desse cabo à profecia que se desencadearia anos à frente, na São Paulo do século XXI: “Depois de mim, o dilúvio”.
Deitado e esgotado, imaginava que os gritos que acabava de ouvir eram extensões da catarse consumada a poucos metros, nas calçadas da av. Paulista. Após uma campanha impecável, o São Paulo sagrava-se campeão da Taça Libertadores da América. Mas, após horas de festa, hinos deixaram de ecoar. Ao longe, a correria já não era em coro com a dança dos vencedores. O estrondo de vidros estilhaçados sinalizava que nem tudo andava bem no país do futebol. Ainda sonolento, demorei a me levantar. Até então, incomodava-me mais a parafernália dentro de casa do que a farra que prometia varar a madrugada mundo afora. Foi quando, na terceira bomba explodida, Leandro pergunta:
-Isso é bomba de gás lacrimogênio?
A noite estava apenas começando.
Junto com outros amigos, Felipe e Mauricio, coloco a cabeça pra fora da janela e sinto o frio da madrugada, a sensação de que as janelas de vidro eram frágeis demais para me certificarem de que estava seguro debaixo das cobertas. Os rojões começam a ser lançados em direção aos prédios. Alguns estouram em frente. Gente gritando, querendo se esconder. A tropa de choque militar chegava em passos lentos, pesados – altos e bons sons. Marcham sobre rebeldes que se espalham pelas ruas, aproveitam a confusão para deixar suas marcas no marco financeiro da nação. Das pedras encontradas no caminho conseguem a munição. As bandeiras são as espadas erguidas, já sem o símbolo que os trouxe ali. Estraçalham o que vêem à frente.
São Paulo à meia noite se assemelha a Gotham City: ao colosso de névoa erguida pela madrugada soma-se a fumaça espalhada pelas bombas de gás lacrimogênio. E se espalha, perdem o foco. Torcedores correm em direção aos prédios. Ainda da janela, vê-se alguns empoleirados nas marquises dos andares de baixo dos condomínios. Invadem as garagens, não deixam sequer os sinaleiros para contar história. Ouve-se barulho dos vidros, mulheres em pânico. Andanças. Os passos da cavalaria aumentam a tensão. Embaixo, noto que alguns dos torcedores tentam, em vão, invadir a garagem de nosso prédio. Chegam com pontapés, voadoras. O estrondo provoca arrepio entre homens empoleirados nas janelas do prédio de 22 andares. Junta-se à tentativa de invasão um sujeito de chapéu de coringa; cinco pontas na aba do chapéu, colorido em preto, vermelho e branco. Ao se aproximar da rampa, acende-se a luz automática. A sombra se espalha: uma enorme figura com chapéu de coringa tentando invadir nosso prédio, agora só escuro.
A fumaça das bombas chega ao prédio. Ardem nossos olhos. A noite acabou. Só há tempo de colocar o agasalho e o tênis. Desço com a calça do pijama, os olhos ainda abobalhados. Não somos os únicos insones do condomínio. Vejo o ponto de ônibus estraçalhado, bares saqueados, vitrines quebradas. Pedaços de vidro da imensa Colombo, resistentes, caem como chuva.
Na banca de jornais, homens se reúnem e tomam distância. Em minutos, as voadoras de multiplicam, como vespas. A porta se dobra, rompida no último chute. Começa a invasão. Levam o que cabe nos bolsos e nas mãos. Cigarros, revistas, chaveiros. Moradores pedem que, por favor, não queimem a banca. Alguém acende um palito de fósforo; o colosso de fogo se arma em instantes, seguido de lamentos.
A tropa de choque se aproxima. Logo à frente, torcedores fazem a barricada. Ateiam fogo na estação de metrô Brigadeiro Luis Antonio. Ouço um grito: “Sai, sai!”. O estouro. O aviso não discrimina seus interlocutores. Ao lado do prédio, o proprietário de um bar ergue a mão, pedindo aos guardas que esperassem; tiros de borracha são disparados. Um deles acerta sua coxa direita. Manca até o prédio, pede proteção. Entra em seguida, voz embargada e olhos mareados. “Levaram tudo, puta que o pariu”.
Cavalos cortam as ruas, espalham gritos. A multidão tenta fugir, espalha-se pelas descidas da Brigadeiro, escondem-se na barricada. Acuada, a tropa de choque fica parada em frente ao prédio. O perfeito exército de Brancaleoni. Enquanto o reforço não chega, são minoria e com as mesmas armas que a multidão. Voam à nossa frente: de um lado, bombas de gás, de outro, rojões. Uma guerra virtual, de poucos mortos ou feridos. De mira e alvos. De baixo alcance e muito barulho.
Perto das 2h, a situação da rua no sentido Paraíso está parcialmente controlada. Já não há sapatos nas vitrines destruídas. Não há, sequer, vitrines. A maioria tem camisas oficiais, Bebe cerveja e ri de conquistas libertárias. Um mendigo, catador de lixo, carrega nas costas dois sacos plásticos cheios de lata de cerveja e passa em frente da banca destruída. Vai juntando todas as latas que vê no caminho. Anda devagar, prestando atenção nos dejetos, em direção à Consolação. Passa em frente à banca e analisa o estrago – enquanto os saques se avolumam no local. Faz frio e é noite. Mesmo assim, é o único que passa ao largo. Limita-se a balançar a cabeça e segue reto. Não retirou dali uma página de jornal que não fosse dele.
Quando a situação acalmou, ficamos imbuídos de uma repentida – e explicável – coragem. Tomamos nossas cadernetas de anotações e fomos à rua. Andamos no sentido Consolação. Desviando dos desejos e dos cacos enormes de vidros. Chegamos à esquina, onde os bares tiveram de interromper a transmissão dos jogos. Não conseguiram conter a multidão. Como resposta, amanheceram com as portas meladas. O cheiro: um misto de urina, vomito e cerveja. Os pés grudavam nas calçadas, onde alguns arriscavam tirar o sono. Boquiabertos, parecíamos estar num corredor recém-bombardeado. Talvez o tenha sido, mas isso a ciência ainda não fez o favor de nos provar.
São Paulo viveu sua noite de Sarajevo. Volto sozinho pra casa, sem medo algum de que o arrastão me levasse. Havia poucos minutos, tinha na cabeça um paradigma de que, sem repressão policial, não haveria violência. Que o estado de barbárie tinha inicio na fundação do Estado. Que enquanto os homens fossem livres, não haveria por que arcar com o soldo policial. E que toda reação nascia das guerras preventivas, criadas para honrarem o soldo, num círculo vicioso, viciado, de legitimação de forças armadas. Me doía naquele instante saber que era grato ao Estado, por ter enviado, ainda que tardiamente, os militares para conter perto de nós. Antes que os festejos invadissem minha casa, matassem meu cachorro, pisassem na minha planta sem que eu nada dissesse. Tudo muito confuso: os estilhaços paradigmáticos foram deixados junto aos dejetos à minha frente.

ainda Anne Bancroft


Durante algum tempo sofri por Ms. Robinson. Senti que lhe faltou uma palavra amiga quando mais precisou de mim. Pagara um preço alto demais por ter desdenhado algumas normas básicas sobre amores impunes. Ms. Robinson não era pessoa má. Mesmo assim, sofreu o destino das grandes vilãs. Custou a acreditar que havia perdido grande tesouro ao ver Dustin Hoffman se mandar com a filha debaixo dos braços. Foi-se embora: paciência. Não foi o primeiro nem seria o último amor mal-resolvido. Benjamin foi só brincadeira que ela havia inventado para se distrair entre um trago e outro. No fim das contas, contou-me ter se divertido com a tremedeira que o rapaz apresentava todas as vezes que sentia o cheiro da água de colônia em que ela se banhava. O prazer que o rapaz era capaz de oferecer não era metade daquele sentido por Ms. Robinson quando via os engasgos do genro ao sentir o mesmo cheiro das noites pecaminosas – antes de escutar seus passos na escada, ela corria ao armário, a se banhar. Voltava, naquele cheiro que penetrava a memória afetiva do mesmo menino assustado de tantos anos atrás. A tristeza dela os homens jamais vão entender. É que até mesmo as pedras decorativas do imenso saguão de sua sala de estar sabia que o amor pela filha não seria superado por qualquer indisposição. Mas existem coisas que só as mulheres, no sentido mais restrito da palavra, conseguem entender. Benjamin colocou em duelo duas gerações. O prêmio era menos importante que a vitória. A vaidade de Elaine em superar a mãe seria menor somente que o de sua mãe, caso esta tivesse levado os louros da idade. Inconscientemente, Elaine vingou-se das tardes chorosas quando se enciumava ao ver os amigos da escola falando da mãe. Era preciso uma pincelada a mais de graça para que Elaine vencesse a mãe em charme e comedimento. Ms. Robinson tinha no olhar o fogo de uma paixão a ser cuspida. A forma com que cruzava as pernas durante eventos familiares, a maneira pretensiosa com que amarrava os cabelos, o estilo impresso nos dedos ao segurar a ponta do cigarro; tudo nela era inspirador e livre. Ms. Robinson sabia disso e não poupava esforços para ter algo mais com que se preocupar durante as tardes – e noites – insones e vagas, a esperar voltar à casa o marido. Pagava para ver o que ou quem mais valia. Por isso, por algum tempo murchou –vendo a filha ganhar a disputa. Tempos depois, havia esquecido a querela. Distraia-se facilmente ao ver os rapazinhos, filhos dos amigos do marido, deixarem a escola, a mochila ainda nas costas, a calça de moletom se arrastando pelo chão. A tática era ainda a mesma. Primeiro, pedia para que lhe acendessem o cigarro; antes de soltar o primeiro trago, deixava a piscadela; na brecha, o rapaz, hora dessas, já se perguntava se aquilo era proposital. Depois, fazia questão de sentar-se ao lado, colando pernas. Num abraço, seja oi ou tchau, afagava com destreza a nuca do menino. No beijo de chegada, sempre um escape na ponta da boca que se tocava num lábio já tremente. Quando deixavam de fitá-la nos olhos, era hora de se jogar. A jogada da carona era conhecida e infalível – gostava, todo jeito, dos moralistas. “Não posso, isso não é direito”. Era o que mais escutava. Vibrava, então, e vivia o ponto-auge da batalha, logo que podia questionar ao sujeito, com ares de inquisição: “Por acaso você não está pensando que estou me insinuando a você, está?”. “Não senhora Robinson. Jamais ousaria supor uma coisa dessas”. Dali em diante, a história era a mesma: ao ver o rapaz subir sozinho ao quarto, não demorava a se apresentar. Ficavam, assim, a sós. O marido estava por chegar, o que geralmente era verdade. Dia seguinte, recebia um telefonema: “Se a proposta ainda estiver em pé...Sabe...Estou aqui. Estou pra você”. Ms. Robinson era mulher de muitos amores para uma vida só.

ainda o fim da Guerra


O céu coberto por uma névoa teimosa emite o primeiro sinal. Não há nada que se esperar do Sol até que este se ponha em seu leito, logo mais. As ações, desde que passaram a ser emitidas por minhas próprias mãos – me dirigir, ainda zonzo, até a chaleira, pôr a água para ferver, acender o dia, colocar o pó no recipiente, tomar banho, vestir o uniforme – tomaram tons inconscientes. Tudo é feito porque simplesmente tem que ser feito.
O pensamento anda longe dali. Longe, dentro de mim. Pouca diferença me faz a manchete do jornal, o PIB que cresceu acima do esperado, a Síria, os deputados.
Hora dessas, basta olhar a internet, tudo estará defasado, antigo, parte do passado. A poucos metros de um apartamento sujo e estreito da Avenida Paulista, as pessoas andam reclamando da renda que não acompanhou a alta dos preços; um sujeito, que não é sírio, acaba de deixar mortos e feridos em nova empreitada; a mãe, que não sabe onde fica o Plenário, aguarda, esperançosa, um transplante ou um milagre para o filho.
Poderia jurar que me comovo com tudo isso. O máximo, porém, que posso fazer por elas é doar alguns segundos de oração. Hoje não haverá tempo para almoço ou chá da tarde. Em meia hora, devo correr para onde dependem de mim. E eu deles.
Antes, um suspiro. Silêncio. Há prazo para aforismos: bom tempo aquele em que, ainda crianças, acordávamos com o Sol na janela e com todo o tempo do mundo para projetar planos e dar fim à Grande Guerra.

ainda Legião


Chegava às 13h, o jogo era às 14h, jogava até às 19h e reclamava quando alguém vinha fechar as portas da quadra. Os meninos despiam-se da timidez e chamavam as meninas pra dançar. Sair com os pais, jantar fora, era motivo de vexame; ninguém queria a fama de filhinho. O negócio era varar a noite. Ir para o Clube 22, à noite. Mostrar que era maior de 14. Vestir camisa social, deixar abertos os dois últimos botões da camisa. Usar gel. Engraxar os sapatos. Segurar copo de guaraná, fingindo ser vodka (exatamente como nossos pais). Fumar sem tragar – deixar bem alto o cigarro; que nos vissem. Dormir na casa de amigos quando os pais viajavam. Pedir para que não cantassem parabéns no dia do nosso aniversário. Ter vergonha das preocupações da avó. Fazer cara feia diante dos amigos dos pais. De dia, andar de skate. Botar calça big, boné pra trás. Falar das meninas, contar as vitórias; esconder derrapadas. Fazer vista grossa à escola, desdenhar livros, bater na cabeça de quem não agia. Fazer piadas, falar alto, teimar. Ser mandado pra fora. Tomar suspensão. Mascar chicletes ouvindo mágoas, revoltas, cobranças. Ter medo de gente mais velha. Fazer sofrer os mais novos. Fitar saias. Fazer pose em frente à Uniara. Beijar com força, de língua. Descer a mão. Espetar a franja. Cuspir no chão. Comemorar os gols como Ronaldinho, hoje Ronaldo, depois Fenômeno. Ver na tv os gols do Müller, Djalminha, Rivaldo, Luizão. Detestar o Grêmio mais até que SP e Corinthians. Ler Playboy em público. Ouvir "Pais e Filhos", verso-chavão-piegas. Não importava. Àquela altura, não podíamos distinguir o que eram insights e o que eram clichês. Tentar entender o que se assemelhava ao belo e humano penetrando sensações com facilidade até então desconhecida. Descobríamo-nos, ao final das festas de quintais, dando as mãos e exaltando fortemente as letras do refrão. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.
Quem cantava? Quem liderava? Quem assumia posturas sobre o que fazer, falar, pensar? Quem mostraria os inimigos embernados na nossa ignorância? Quais os fios-condutores de nossas revoltas? Quem era o valente herói-santo-porque-sabia-morrer? Quem iria mudar o planeta durante festas no quintal de casa que murchavam, entre meninas que cresceran mulheres e preferiram seguir sorrindo? Qual o bonde da transposição para aquela tarde, aquele fim de tarde? Quem, afinal, roubou aquela coragem?

ainda Raskolnikov




Todo final de tarde, quando deixava a bicicleta na garagem para tomar seu posto no turno da noite, Maurício pegava o interfone, discava o número 1102, e me perguntava se tinha algum livro para emprestar. Jovem ainda, pai de duas meninas e casado desde vinte e poucos anos, Maurício se destacava facilmente entre os porteiros e moradores de nosso prédio. Dono de um português correto, de uma agilidade de raciocínio pouco visto fora da escola, ele se acostumara a passar as noites de guarita munido de silêncio e boa leitura. Lia de tudo um pouco, de Braga e Sabino, a Saramago, Machado. Passavam duas, três noites, e ele voltava a me ligar, pedindo algum novo exemplar. -É que aquele eu já li... – desculpava-se, sempre. Mesmo chegando às vezes cansado em casa, gostava de parar um tempo na portaria e conversar com o rapaz. Maurício guardava para cada vereador de nossa cidade ou deputado federal uma crítica sobre a gestão. Gastos com IPTU, correção de preço de luz e telefone, aumento do IPCA, corte na taxa de juros: minutos depois de publicada as novas do Planalto, ele já tinha o que falar do alto de sua guarita. Dos livros que lhe foram emprestados, o que mais o fez brilhar os olhos foi um tal "Crime e Castigo", de Dostoievski. Criara uma empatia imediata por Ródion Ramanovich Raskolnikov. Levou algumas semanas para terminar a leitura. Sempre quando me via chegando no prédio, me parava para ler algum trecho. -Olha isso: “Os homens são divididos e duas classes: os ordinários, ou escravos, destinados ao cumprimento da ordem institucional e à continuidade das espécies, e os extraordinários. Estes são aqueles que têm o direito de cometer toda a sorte de crimes e infringir de todas as maneiras as leis, por direito próprio, por serem extraordinários. Claro que não têm direito a autorizar sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos, mas unicamente em caso de que a execução que seu desígnio assim exigir”. E completava, após a ler a mim o trecho: -É assim que age aquele que está no poder! Enquanto quem é vulgar e ordinário faz o serviço braçal, os extraordinários pintam e bordam. Mas, sabe: não é de todo injusto. Se esse povo nosso tivesse o mínimo interesse em desmascarar esses caras, não haveria tanta CPI inútil. Eles têm o direito de cometer crimes, por um motivo óbvio: nós deixamos. Era um revolucionário em potencial. Um sujeito fora do lugar, revoltado com seu tempo, as instituições, o poder, sobretudo com a ignorância que nos cercava. Passou o tempo, vim para São Paulo, as conversas com Maurício se tornaram raras, rápidas, semanais. Foi tempo suficiente para vê-lo menos rebelde com o nosso tempo e ignorância. Das últimas conversas, lembro-me somente de que falava sobre cortes de água e energia em seu bairro, um lugar afastado do centro da cidade. -Queria processar esses caras, mas é só pobre tentar se organizar para mover ação que o Procon começa a dar para trás. Estou cansado de mandar cartas e telefonar para a prefeitura e às secretarias. Foi a última frase que guardei dele. A única que me explica o silêncio que ele insiste em manter nos últimos meses. A raiva que acumulava do mundo estava, decerto, lhe fazendo mal. Nunca mais o vi daquele jeito: olhos cuspindo inconformismo, dicas de atalhos para sobreviver no mundo da cretinice, idéias de soluções sobre como derrubar governos e tornar o mundo algo mais humano, igualitário. Assuntos que foram podados de seu vocabulário. Tudo substituído por uma postura serena, sorridente – embora talhada numa tristeza de incontáveis derrotas. Maurício cansou de perder. Parou de berrar sozinho na portaria. Percebeu que as idéias do velho Raskolnikov estavam mergulhando-o em solução desesperadora: ser guia de cegos, num local em que ninguém quer ser guiado. O quê fazer com as soluções? As lutas? O inconformismo? Ele as guardou todas. Alçou bandeira branca. E passou a falar sobre formas de se conformar e esperar a hora certa para agir. Era sua forma de sobreviver: acreditar que algo melhor era possível, mas através do esquecimento. Era o assassinato em série de velhos lamentos. Porque a espera por uma justiça que não vem é ainda a mais desumana forma de sentir dor.

ainda Araraquara


A primeira imagem que guardo na lembrança é a de um menino assustado, cercado por pai, mãe e tia/madrinha e sendo forçado a posar para uma foto que se negava a tirar. Levava na cabeça um chapéu de marinheiro; a aba dobrada deixava somente o selo da loja – azul – transparecer. Em volta, alguns cabelos querendo ganhar a vida afora, bem como a minha vontade de saltar daquela fonte circular, onde jorravam tédio e água mineral. Salvo o chapéu, todo o resto de meu corpo estava descoberto. Como quando vim ao mundo. A água que saía da fonte gelava meus pés e tornava aquela situação incômoda. Levava comigo uma pá de plástico, que somava um conjunto com um rastelinho e uma bola amarela. Eram as únicas armas que levava em mãos para dar na cabeça de quem me vinha afagar as faces, apertar as bochechas e inundá-las com saliva de beijos amargos.
Anos mais tarde, ao olhar a foto do menino assustado contando nem bem um ano e meio, soube que a fonte ainda existia. Foi durante muito tempo o cartão de visitas da pequena Thermas de Ibirá, cidadezinha do interior de São Paulo, onde vivem hoje meus avós e tios. É para onde viajo quando sinto que a fumaça e barulho de São Paulo tentam tirar de mim o homem que sou. Ainda hoje, se estiver sentado no sofá de minha casa na capital e me pego para ver, ler ou ouvir algo, inicio um exercício cruel de me manter exatamente onde estou – cumprindo assim com as obrigações que me prendem no mesmo local, no dia seguinte de manhã. E me transporto para onde meus olhos sinceramente gostariam de pousar.
Num conflito sobre a ambivalência perímetro urbano/limite rural, emendo o golpe de Minerva quando retorno às sextas-feiras para minha cidade natal, Araraquara. Ali encontro o equilíbrio entre as vocações que me afligem. De um lado, respirando um pouco da fumaça que cospem os carros da Rua 2, numa realidade enriquecida pelo ritmo. Em Araraquara posso me exilar por instantes do planeta das horas marcadas. Araraquara é o único ponto do globo em que posso deitar-me tranqüilo, um visitante já sem casa. Em São Paulo, barulho e ritmo que levam a pensar que falta algo. Sempre. Em Thermas de Ibirá, o ponto oposto da corda, já não sou peça da engrenagem. Paciência: pois se Salomão encontrou sabiamente o meio termo no coração de duas mães, quanto menos custoso foi achar refúgio para esta alma de uma mãe só. Ao menos há nisso algo que, enfim, eu possa fazer inveja a Manuel Bandeira: minha Pasargada não precisei criar. Ela já existia bem antes de mim. E segue imponente no mesmo lugar – onde há de ficar quando meu tempo também passar.