terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ainda a milésima segunda noite




A primeira bomba estourou alto, na última meia hora de 14 de julho - ano 2005, quando se celebrava o 216º aniversário da Queda da Bastilha, aquele passo de revoltosos franceses que dera fim às regalias do rei Luis XVI. Inspirado por vozes premonitórias, vossa majestade talvez não desse cabo à profecia que se desencadearia anos à frente, na São Paulo do século XXI: “Depois de mim, o dilúvio”.
Deitado e esgotado, imaginava que os gritos que acabava de ouvir eram extensões da catarse consumada a poucos metros, nas calçadas da av. Paulista. Após uma campanha impecável, o São Paulo sagrava-se campeão da Taça Libertadores da América. Mas, após horas de festa, hinos deixaram de ecoar. Ao longe, a correria já não era em coro com a dança dos vencedores. O estrondo de vidros estilhaçados sinalizava que nem tudo andava bem no país do futebol. Ainda sonolento, demorei a me levantar. Até então, incomodava-me mais a parafernália dentro de casa do que a farra que prometia varar a madrugada mundo afora. Foi quando, na terceira bomba explodida, Leandro pergunta:
-Isso é bomba de gás lacrimogênio?
A noite estava apenas começando.
Junto com outros amigos, Felipe e Mauricio, coloco a cabeça pra fora da janela e sinto o frio da madrugada, a sensação de que as janelas de vidro eram frágeis demais para me certificarem de que estava seguro debaixo das cobertas. Os rojões começam a ser lançados em direção aos prédios. Alguns estouram em frente. Gente gritando, querendo se esconder. A tropa de choque militar chegava em passos lentos, pesados – altos e bons sons. Marcham sobre rebeldes que se espalham pelas ruas, aproveitam a confusão para deixar suas marcas no marco financeiro da nação. Das pedras encontradas no caminho conseguem a munição. As bandeiras são as espadas erguidas, já sem o símbolo que os trouxe ali. Estraçalham o que vêem à frente.
São Paulo à meia noite se assemelha a Gotham City: ao colosso de névoa erguida pela madrugada soma-se a fumaça espalhada pelas bombas de gás lacrimogênio. E se espalha, perdem o foco. Torcedores correm em direção aos prédios. Ainda da janela, vê-se alguns empoleirados nas marquises dos andares de baixo dos condomínios. Invadem as garagens, não deixam sequer os sinaleiros para contar história. Ouve-se barulho dos vidros, mulheres em pânico. Andanças. Os passos da cavalaria aumentam a tensão. Embaixo, noto que alguns dos torcedores tentam, em vão, invadir a garagem de nosso prédio. Chegam com pontapés, voadoras. O estrondo provoca arrepio entre homens empoleirados nas janelas do prédio de 22 andares. Junta-se à tentativa de invasão um sujeito de chapéu de coringa; cinco pontas na aba do chapéu, colorido em preto, vermelho e branco. Ao se aproximar da rampa, acende-se a luz automática. A sombra se espalha: uma enorme figura com chapéu de coringa tentando invadir nosso prédio, agora só escuro.
A fumaça das bombas chega ao prédio. Ardem nossos olhos. A noite acabou. Só há tempo de colocar o agasalho e o tênis. Desço com a calça do pijama, os olhos ainda abobalhados. Não somos os únicos insones do condomínio. Vejo o ponto de ônibus estraçalhado, bares saqueados, vitrines quebradas. Pedaços de vidro da imensa Colombo, resistentes, caem como chuva.
Na banca de jornais, homens se reúnem e tomam distância. Em minutos, as voadoras de multiplicam, como vespas. A porta se dobra, rompida no último chute. Começa a invasão. Levam o que cabe nos bolsos e nas mãos. Cigarros, revistas, chaveiros. Moradores pedem que, por favor, não queimem a banca. Alguém acende um palito de fósforo; o colosso de fogo se arma em instantes, seguido de lamentos.
A tropa de choque se aproxima. Logo à frente, torcedores fazem a barricada. Ateiam fogo na estação de metrô Brigadeiro Luis Antonio. Ouço um grito: “Sai, sai!”. O estouro. O aviso não discrimina seus interlocutores. Ao lado do prédio, o proprietário de um bar ergue a mão, pedindo aos guardas que esperassem; tiros de borracha são disparados. Um deles acerta sua coxa direita. Manca até o prédio, pede proteção. Entra em seguida, voz embargada e olhos mareados. “Levaram tudo, puta que o pariu”.
Cavalos cortam as ruas, espalham gritos. A multidão tenta fugir, espalha-se pelas descidas da Brigadeiro, escondem-se na barricada. Acuada, a tropa de choque fica parada em frente ao prédio. O perfeito exército de Brancaleoni. Enquanto o reforço não chega, são minoria e com as mesmas armas que a multidão. Voam à nossa frente: de um lado, bombas de gás, de outro, rojões. Uma guerra virtual, de poucos mortos ou feridos. De mira e alvos. De baixo alcance e muito barulho.
Perto das 2h, a situação da rua no sentido Paraíso está parcialmente controlada. Já não há sapatos nas vitrines destruídas. Não há, sequer, vitrines. A maioria tem camisas oficiais, Bebe cerveja e ri de conquistas libertárias. Um mendigo, catador de lixo, carrega nas costas dois sacos plásticos cheios de lata de cerveja e passa em frente da banca destruída. Vai juntando todas as latas que vê no caminho. Anda devagar, prestando atenção nos dejetos, em direção à Consolação. Passa em frente à banca e analisa o estrago – enquanto os saques se avolumam no local. Faz frio e é noite. Mesmo assim, é o único que passa ao largo. Limita-se a balançar a cabeça e segue reto. Não retirou dali uma página de jornal que não fosse dele.
Quando a situação acalmou, ficamos imbuídos de uma repentida – e explicável – coragem. Tomamos nossas cadernetas de anotações e fomos à rua. Andamos no sentido Consolação. Desviando dos desejos e dos cacos enormes de vidros. Chegamos à esquina, onde os bares tiveram de interromper a transmissão dos jogos. Não conseguiram conter a multidão. Como resposta, amanheceram com as portas meladas. O cheiro: um misto de urina, vomito e cerveja. Os pés grudavam nas calçadas, onde alguns arriscavam tirar o sono. Boquiabertos, parecíamos estar num corredor recém-bombardeado. Talvez o tenha sido, mas isso a ciência ainda não fez o favor de nos provar.
São Paulo viveu sua noite de Sarajevo. Volto sozinho pra casa, sem medo algum de que o arrastão me levasse. Havia poucos minutos, tinha na cabeça um paradigma de que, sem repressão policial, não haveria violência. Que o estado de barbárie tinha inicio na fundação do Estado. Que enquanto os homens fossem livres, não haveria por que arcar com o soldo policial. E que toda reação nascia das guerras preventivas, criadas para honrarem o soldo, num círculo vicioso, viciado, de legitimação de forças armadas. Me doía naquele instante saber que era grato ao Estado, por ter enviado, ainda que tardiamente, os militares para conter perto de nós. Antes que os festejos invadissem minha casa, matassem meu cachorro, pisassem na minha planta sem que eu nada dissesse. Tudo muito confuso: os estilhaços paradigmáticos foram deixados junto aos dejetos à minha frente.

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