terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ainda Raskolnikov




Todo final de tarde, quando deixava a bicicleta na garagem para tomar seu posto no turno da noite, Maurício pegava o interfone, discava o número 1102, e me perguntava se tinha algum livro para emprestar. Jovem ainda, pai de duas meninas e casado desde vinte e poucos anos, Maurício se destacava facilmente entre os porteiros e moradores de nosso prédio. Dono de um português correto, de uma agilidade de raciocínio pouco visto fora da escola, ele se acostumara a passar as noites de guarita munido de silêncio e boa leitura. Lia de tudo um pouco, de Braga e Sabino, a Saramago, Machado. Passavam duas, três noites, e ele voltava a me ligar, pedindo algum novo exemplar. -É que aquele eu já li... – desculpava-se, sempre. Mesmo chegando às vezes cansado em casa, gostava de parar um tempo na portaria e conversar com o rapaz. Maurício guardava para cada vereador de nossa cidade ou deputado federal uma crítica sobre a gestão. Gastos com IPTU, correção de preço de luz e telefone, aumento do IPCA, corte na taxa de juros: minutos depois de publicada as novas do Planalto, ele já tinha o que falar do alto de sua guarita. Dos livros que lhe foram emprestados, o que mais o fez brilhar os olhos foi um tal "Crime e Castigo", de Dostoievski. Criara uma empatia imediata por Ródion Ramanovich Raskolnikov. Levou algumas semanas para terminar a leitura. Sempre quando me via chegando no prédio, me parava para ler algum trecho. -Olha isso: “Os homens são divididos e duas classes: os ordinários, ou escravos, destinados ao cumprimento da ordem institucional e à continuidade das espécies, e os extraordinários. Estes são aqueles que têm o direito de cometer toda a sorte de crimes e infringir de todas as maneiras as leis, por direito próprio, por serem extraordinários. Claro que não têm direito a autorizar sua consciência a saltar por cima de certos obstáculos, mas unicamente em caso de que a execução que seu desígnio assim exigir”. E completava, após a ler a mim o trecho: -É assim que age aquele que está no poder! Enquanto quem é vulgar e ordinário faz o serviço braçal, os extraordinários pintam e bordam. Mas, sabe: não é de todo injusto. Se esse povo nosso tivesse o mínimo interesse em desmascarar esses caras, não haveria tanta CPI inútil. Eles têm o direito de cometer crimes, por um motivo óbvio: nós deixamos. Era um revolucionário em potencial. Um sujeito fora do lugar, revoltado com seu tempo, as instituições, o poder, sobretudo com a ignorância que nos cercava. Passou o tempo, vim para São Paulo, as conversas com Maurício se tornaram raras, rápidas, semanais. Foi tempo suficiente para vê-lo menos rebelde com o nosso tempo e ignorância. Das últimas conversas, lembro-me somente de que falava sobre cortes de água e energia em seu bairro, um lugar afastado do centro da cidade. -Queria processar esses caras, mas é só pobre tentar se organizar para mover ação que o Procon começa a dar para trás. Estou cansado de mandar cartas e telefonar para a prefeitura e às secretarias. Foi a última frase que guardei dele. A única que me explica o silêncio que ele insiste em manter nos últimos meses. A raiva que acumulava do mundo estava, decerto, lhe fazendo mal. Nunca mais o vi daquele jeito: olhos cuspindo inconformismo, dicas de atalhos para sobreviver no mundo da cretinice, idéias de soluções sobre como derrubar governos e tornar o mundo algo mais humano, igualitário. Assuntos que foram podados de seu vocabulário. Tudo substituído por uma postura serena, sorridente – embora talhada numa tristeza de incontáveis derrotas. Maurício cansou de perder. Parou de berrar sozinho na portaria. Percebeu que as idéias do velho Raskolnikov estavam mergulhando-o em solução desesperadora: ser guia de cegos, num local em que ninguém quer ser guiado. O quê fazer com as soluções? As lutas? O inconformismo? Ele as guardou todas. Alçou bandeira branca. E passou a falar sobre formas de se conformar e esperar a hora certa para agir. Era sua forma de sobreviver: acreditar que algo melhor era possível, mas através do esquecimento. Era o assassinato em série de velhos lamentos. Porque a espera por uma justiça que não vem é ainda a mais desumana forma de sentir dor.

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