segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

anos 80


A música está em algum canto, e quando a inventaram eu era mudo, não sabia ainda o que significavam as palavras nem os ditos e os desditos que sua natureza inspirava. Inspirava ao girar num disco compacto, de lado A e lado B, com o selo da Aple. Se no início era o verbo, pronome ou sobrenome não sei; o que me lembro é que ecoavam como vozes roucas, sem cores ou amores inusitados. Era uma sala escura, de paredes beges e cortinas pesadas; era preciso girar uma manivela para abri-la e fizesse alguém de dentro entender um pouco do mundo afora. E havia um computador, ainda a ser inventado; enorme como a pretensão. E a pretensão era que tudo permanece como estava. E as pessoas usavam vestidos, cabelos empinados. E tudo era cinza. Cinza como a música que tocava em um rádio mal projetado, enorme, grande como a pretensão. O chão era denso e escuro e tudo parecia escuro naquela sala, naqueles anos. Escuros como a invenção do que se anunciava. Qualquer claridade era nova, e o novo era fazer ficarem claros todos os planos que um dia deixaram de ser feitos. Claros como panos que se penduravam nas portas e guiavam as mulheres que nos levavam para benzer. Eram cheiros comuns, cheiros metálicos; mas a hortaliça estava de pé, num canto, numa época em que o canto era sagrado. Vieram as novas, as invenções, e o quarto de TV deixou de parecer algo inventado; tornou-se comum ouvir aquelas vozes – aquele boa noite que só Cid Moreira sabia inspirar. Estávamos escondidos. Desconectados. Até que alguém apagou a vela e acendeu o fio. E clareou, clareou como nos tempos em que não havia salas nem quartos nem hortaliças. Mas clareou porque tinha que clarear e não porque alguém da sala pedia luzes. Na sala o que pediam era apenas mais um copo. Um copo de lamento e outro de cólera. Naqueles anos inspirados e perdidos.

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