terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ainda Raul

Parece sina de artista sexagenário: mal é pago o ingresso para entrar nos bailes da terceira idade, e eles perdem de vista qual adjetivo devem carregar ao lado seus nomes. Raul Seixas não é diferente. Cantor, roqueiro, compositor, autor de peças, escritor. As denominações são muitas, mas poucas abrangem com exatidão o significado de seu sujeito. Para muitos, não há até hoje melhor designação a ele do que, simplesmente, artista. Tal confusão ganhou um agravante em 1995, quando Raulzito lançou seu primeiro livro, "A Saga de um Louco Varrido". O romance – para muitos, o mais autobiográfico de sua obra – rompeu todas as fórmulas de best sellers até então vigentes: mesmo tendo conquistado de imediato o público, ganhou todas as menções honrosas da famigerada crítica. Assim como seu companheiro, Chico Buarque – que também recentemente completou 60 anos –, Raul ganhou com os livros ares de notoriedade. Ficou difícil, a partir de então, chamá-los simplesmente de cantores ou somente escritores. Mas, diferentemente de Chico, Raul Seixas nunca militou tão fortemente na produção musical como nos dias de hoje. Seus livros apenas o alçaram para um campo onde ficou provado: da alquimia entre maluquês e lucidez, sempre nasce um estranho e incontestável eco de genialidade. Seja em que área das artes isso aconteça. Com 63 primaveras completadas em 28 de junho e após transitar pela literatura, logo que largou de vez a bebida, Raulzito decidiu tirar o pó da guitarra. Afinou-a, subiu ao palco e deixou os fãs – hoje unidos em primeiras, segundas e terceiras gerações – com a certeza de que o rock nacional nunca colheu tão bons frutos como em 2005.
Neste último CD, "Visita a Al Capone", o Maluco Beleza fez de tudo. Voltou às origens ao misturar solos de guitarra com toques de baião; usou e abusou da velha ironia em "Que País Tu me Guardou?"; flertou com partido alto e ainda fez pose de rapper na dobradinha com MV Bill em Moleque da Zona Sul. O público foi ao delírio e a crítica, mais uma vez, se rendeu. O detalhe: todas as faixa do CD foram gravadas em seu estúdio particular, na chácara Samba (Sociedade Alternativa Maluco Beleza), em Salvador, sua cidade natal, para onde se mudou ao término da Copa de 1994. “Foi promessa: lancei com Marceleza [Marcelo Nova]: se o Baixinho levar o caneco nos Estados Unidos, saio do Rio e volto pra Bahia. Não dava nada para aquele time... Mas me ferrei...Pra tu ver que, com futebol, a gente não brinca, não”, relata, sem perder o humor. Na chácara Samba, Raul não faz distinção das visitas: recebe fãs, saudosos, curiosos e – pasmem – jornalistas. Sem que para isso seja preciso marcar horário em sua agenda. Com as barbas brancas e o cabelo até a altura da cintura – muito parecido com o personagem da capa do LP “Há Dez Mil Anos Atrás”, de 1976 –, Raul garante: virou um avozão careta das mais de 300 crianças carentes que recebem na chácara Samba aulas de música, pintura e literatura. Ali, todo fim de tarde, o cantor-compositor-escritor senta-se na varanda com a criançada, pouco antes do jantar, para cantar alto o trecho de uma de suas mais simbólicas frases sobre a esperança: “Todo jornal que eu leio, me diz que a gente já era, que já não é mais primavera, oh, baby, oh, baby: a gente ainda não começou!”.
Lágrimas nos olhos, todos garantem ver ali um novo ânimo para topar a rotina. No último Natal, o projeto Samba ganhou menção honrosa da ONU como patrimônio da humanidade, o que fez vazar boatos de que Raul seria o favorito para ganhar o Prêmio Nobel da Paz em 2009. A biblioteca do local tem hoje 5.000 exemplares, número que promete dobrar até o ano que vem a se observar o ritmo das doações. “Sabe como é que é: não adianta a gente ficar berrando e gravando CD botando bronca na guerra se não fizermos a revolução por nossas mãos", diz.
O personagem, que já brincou de escrever livros e fazer música, não abriu mão da irreverência ao fim desta entrevista. Perguntado se preferia ser chamado escritor ou compositor, ele não hesitou em responder: “Bota aí que eu sou mesmo é ator. Sou tão bom ator, tão bom ator, que finjo ser cantor, compositor e literato e todo mundo acredita”.

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