domingo, 15 de fevereiro de 2009

desapaixone-se


Com uma toalha segurando os cabelos e os pés apoiados na janela, Holly (Audrey Hepburn) rabisca algumas notas no violão enquanto Paul (George Peppard), postado num andar superior do mesmo prédio, a observa sem piscar. A música, “Moon River”, progride e a cada acorde a câmera se aproxima dela, até ser focada de vez em seu rosto. Justamente no trecho que diz: “There’s such a lot of world to see”. Paul está apaixonado. Todos estamos.
Só não sabemos qual parte do mundo coube aos dois ao fim de “Bonequinha de Luxo”.
Nem podemos imaginar que fim teriam Jack e Rose se o personagem interpretado por Leonardo DiCaprio não tivesse escorregado daquele bloco de gelo, soltando para sempre as mãos de Rose (Kate Winslet). A distância num caso e a morte, no outro, mantiveram conservados para sempre os suspiros de amores contraditos dos principiantes.
Mesma sorte não tiveram Frank e April, vividos pelos mesmíssmos DiCaprio e Winslet no novo filme de Sam Mendes, baseado no romance de Richard Yates, “Revolutionary Road”, toscamente traduzido no Brasil como “Foi Apenas um Sonho”.
Sorte que parecia consumada, pois aquele mesmo “tanto mundo” cantado por Hepburn estava disponível ao jovem e belo casal nos Estados Unidos do pós-guerra. Tinham a vida e o mundo pela frente, algumas sobras de suspiros, uma beleza ainda intacta, dois belos filhos, além de uma linda casa branca – com varanda, um quintal e várias janelas para ver o sol nascer, como na música. Sol que está presente o tempo todo durante o filme, iluminando cada canto de uma casa típica da família doriana. Aquela vida branca, clara e bela, é um inferno. Ele é chucro e, para ela, um sujeito covarde, pouco interessante e incapaz de aceitar mudanças; ela, sonhadora, é uma atriz frustrada, sem talento para o palco ou para mãe e dona do lar. Os personagens são personagens desencontrados, num palco para eles desconhecido, interpretando uma peça que desprezam.
Nas mais de duas horas de filme, o que se vê é a tensão existente entre dois jovens que veem o mundo cantado por Hepburn se perder das mãos. Descobrem que aquela vida é uma farsa encenada para agradar os pais e os vizinhos solícitos e aparentemente felizes, com quem mantêm conversas bestas sobre assuntos detestáveis. Ambos parecem não só terem notado viverem uma alegria falsa; notam, sobretudo, que a felicidade não existe em meio àquele “vazio sem esperança”, branco como o branco, a mistura de todas as cores fundidas e...invisíveis.
Esse vazio é apontado pelo único personagem que tem coragem de enlouquecer e assumir que enlouqueceu – o filho de uns vizinhos, recém-saído do hospício. Detestável, como a verdade.
Assim como em “Beleza Americana”, do mesmo diretor, esse “vazio sem esperança” do modo de vida que escolhemos é também posto em xeque. A pergunta: o que fazer depois do triunfo?
Na vida, somos treinados o tempo todo para os grandes momentos, e não os pequenos. Ouvimos histórias sobre triunfos da coragem, sobre a necessidade de sermos homens, realizados, alegres, dispostos, honestos, trabalhadores; bons amantes, bons pais, bons vizinhos. Somos criados para vencer, superar a escola, a carreira.
Mas o filme parece dizer que nem sempre temos vocação para esse mundo que nos é imposto como um desafio; porque sabemos atravessar desertos, mas não sabemos como agir após a travessia.
Ao notar que a alegria e a paz prometidas para após o desafio – juntar os trapos, ter uma casa e os filhos – April e Frank são incitados agora não apenas pelo tédio, mas pela própria noção de incapacidade. Essa incapacidade, representada no filme como a ausência de talento e sensibilidade que angustia o mesmo casal, sem esperanças se não à de fugir para outro mundo (Paris?). É justamente o que os leva à destruição.
Em momento-chave, Frank, que já lutara na guerra, confessa, bêbado, que sentia falta das frentes de batalha, dos conflitos, da guerra, e até de sentir medo. Porque, diante do perigo, sentia o sangue correr pelas veias. Sabia que estava vivo.
Mas os tempos, Frank, agora são de paz, e mesmo sendo treinados para sermos heróis, temos que nos acostumar com os esforços para nos contentar com as comodidades da geladeira. Ou do quintal. Ou da casa branca de madeira nobre. Ou da competiçãozinha fétida com o vizinho de grama mais verde ao lado. Das escapadas num sábado à noite. Dos olhares da colega de trabalho. Da promoção no trabalho que nos esmaga. Da praia, suja e lotada no fim de semana. Da embriaguez. Das conversas tontas de quem sonha apenas em levantar, cumprir o que nos foi determinado, dormir, e esperar morrer. Enquanto a TV nos distrai.
Em “As Benevolentes”, Max Aue, o agente da SS que narra sua versão da segunda guerra, afirma que a vida parece ser feita por quem já descobriu que ela é uma farsa, e, cinicamente, não se importa com isso; por quem ainda não descobriu que é uma farsa, e se aliena nas pequenas e pueris alegrias; e por quem, como Jack e April, já sacou que o tédio triunfa, mas sofre com isso e busca respostas.
E por sofrerem, e por sermos criados para vencer, lutar, e ir à frente, é que, sem objetivos, nos distraímos, como Jack e April, com os passatempos favoritos da nossa geração: destruir quem está ao nosso lado.
Em minha vida, cansei de ver meus tios, casais de amigos, pais de amigos e até meus próprios pais se humilharem, entre eles mesmos, ou diante do mundo, para saber quem pode mais. Como se o sonho de ser tornar astronauta tivesse sido abortado em nome de um dever que nos foi delegado: cuidar dos filhos, da casa, do sustento. Sabem que, fora a casa, não foram capazes de construir nada, absolutamente nada, juntos. Capazes foram somente de cuspir méritos, à espera de um reconhecimento que não virá, e minar o que o outro tem de melhor, com o intuito de não o perder para o resto do mundo.
Ganância, ciúmes, cobranças; indiferença, desencanto, desprezo. A alegria de desautorizar e se vingar por aquela viagem negada naquele verão. Ou porque as coisas, ao lado de mais alguém, jamais vão sair exatamente como imaginamos no começo.
Pois é. O filme é uma patada no estomago, e saí dele direto para o bar, para murmurar sozinho. Meu estomago ainda doía. Diante do argumento exposto a mim naquele filme: sim, sabemos vencer o inimigo, mas não nos comportar em tempos de paz.
Por isso, seguimos guerreando, pois se por um lado não há mais causas, por outro, as armas ainda existem e estão ao alcance. São usadas para nosso esporte favorito: enlouquecer e levar à loucura não o inimigo, mas aqueles que aceitaram viver perto de nós. Supostamente para toda a vida.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

...ou NDA?



Pena. Poucos filmes que assisti frustraram tanto minhas expectativas como
“Slumdog Millionaire”, já cultuado longa de Danny Boyle e, como dizem, favoritíssimo para levar o Oscar.
Não que seja ruim. Mas fui a ele numa sexta à noite, quase madruguenta, após baixar o arquivo no computador – o filme só chega no Brasil depois da premiação – como se fosse ao encontro de algo que mudaria para sempre minhas concepções mais arraigadas...Deveria ter juntado uma graninha a mais e viajado para o Taj Mahal para isso, como fez minha amiga Roberta Tasselli.
O filme, traduzido no Brasil como “Quem Quer Ser um Milionário?” conta a história de Jamal Malik, garoto indiano que participa de uma espécie de “Show de Milhão” de seu país. Tirem o Silvio Santos do palco e coloquem o menino diante de um cover do Afanasio Jazadji, cover de deputado e radialista paulista, que só ri e zoa os cara quando alguma câmera é ligada. Fora de lá, é um calhorda, arrogante, disposto a espetar o convidado cada vez que lembra que o menino nasceu na favela e hoje não passa de um assistente de telemarketing. Isso já é metade do filme.
Repito: pena. Porque a proposta, mal executada, parece ser genial: mostrar como um menino pobre, órfão desde cedo, perdido no emaranhado das ruas e entulhos das favelas da gigante Mumbai (antiga Bombaim e futura maior cidade do planeta), consegue ter todas as respostas para todas as alternativas que lhe são dirigidas ao longo do filme, tanto pelo apresentador do programa como pelos personagens às sua caça pelas ruas. Como se os caminhos não tivessem uma resposta certa, mas quatro alternativas erradas, das quais nos livramos ao nos desviar delas pela lógica ou por eliminação.
O que conduz Jamal, parece dizer o diretor, não é o que o programa oferece. Ele parece saber da espetacularização da miséria ou do desafio que supostamente propõem seus idealizadores na TV _dar uma chance a um jovem condenado às mazelas da pobreza a oportunidade de ficar rico e se tornar, enfim, gente. Algo bem parecido com o que vemos com as casas, carros e reformas oferecidos para quem se dispõe a se rebolar pelado em cima de um tambor de óleo para elevar o traço de audiência em programas de auditório por essas paragens.
O que conduz Jamal e o ensina não é o preparo para o desafio na TV, mas a própria rua, a vivência, que se apresenta e o leva a emitir as respostas certas. Jamal parece saber que dar a alternativa correta diante das perguntas que podem mudar o rumo de nossas vidas não é questão de estudo, preparo, raciocínio nem exclusão; para Jamal basta recorrer à memória. Ele não tem, como se verá, as respostas de todas as perguntas, mas apenas para as perguntas que lhe são apresentadas. É o que precisa saber. Porque as perguntas, lançadas a ele como bombardeios, já foram respondidas, e foram os próprios desafios de sua juventude esmagada, fugitiva, sobretudo de desencontros e trapaças, que o faz responder qual é o nome do presidente impresso na nota de cem dólares ou o lema na bandeira indiana.
Ao fundo, Boyle parece dizer: malandro que é malandro não sabe a resposta, mas desvia de erros e não se deixa enganar nem confiar. Nem mesmo no próprio irmão.
No país das crenças, em mitos, deuses e agora nos homens que conduzem um país em expansão econômica, é o pé atrás, não a fé, que orienta cada passo do desafiado. É o que Jamal parece levar em conta, no momento mais instigante do filme, quando o próprio apresentador – o Jazadji cover – se mostra confiável para lhe empregar a peça – uma das tantas que o rapaz aprendeu a driblar desde cedo.
Curiosamente, são as respostas, e não as perguntas, que levam Jamal a ter de responder, por sua vez, por seus atos, numa delegacia, para esclarecer aquele dom, visto, não pelos milhões de expectadores que nele veem a salvação, mas pelos próprios produtores daquela farsa na TV, como uma fraude. Portanto, caso de polícia. Talvez uma crítica indireta desenhada pelo diretor para mostrar o quanto aquela Índia, que produz e cria as suas crianças em condições subumanas de desenvolvimento, parece, ela mesma, desacreditar que daquele meio seja possível emergir algo limpo e esclarecedor.
As respostas sobre as respostas, ditas por meio de um interrogatório na delegacia antes mesmo do desafio final, é o que liga o filme à infância de Jamal. Bem como Sherazade, o autor das histórias – dessa vez reais – garante não novas 1.001 noites de vida, mas o crédito da plausividade. A plausividade do absurdo, que começa ao nascer, ao crescer e ao ser desafiado com questões em um mundo povoado de trapaças, como os milhões oferecidos naquele show como numa alegoria.
Mas não são os milhões de rúpias que levam Jamal ao programa. O que o leva até ali é a única coisa que parece ter sentido para ele, e que é capaz de tirá-lo do sério toda vez que lhe é tomada das mãos: o coração. Aargh...Dá revertério só de escrever isso.
Pois é aí que o filme perde a mão: ao colocar como pano de fundo uma história de amor desencontrada, Boyle parece disposto a encenar um conto de fadas, capaz de fazer refletir, mas também de agradar ao público, todos os públicos, exatamente como o fazem os shows de auditório que tão bem conhecemos.
Sem contar as músicas, péssimas, que tocam do nada a cada cinco minutos, toda vez que os atores se pegam a correr – sim, outra baixa do longa: todo mundo corre de tudo e de todos, menos de seus estereótipos.
Não fosse essa solução dada aos questionamentos que o filme se propõe, o longa fatalmente entraria no topo da minha preferência para a premiação de logo mais. Mas, pela confusão e pelo clichê, pelo sentimentalismo ingênuo e esperançoso, fica guardado como decepção. Mantenho meu voto em “Milk”.
Parêntesis. Uma coisa deve ser dita. A atuação dos moleques indianos, em um cenário indiano, no meio de uma produção como cara, sotaque e natureza britânica, é imperdível. De se tirar o chapéu.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

em 96 também...

Só pra matar saudade...

o ano que não terminou



Wanderley Luxemburgo pode queimar a língua, mas parece convicto de que esse time que está levando a campo no início da temporada é bem parecido com a sua equipe de 1996. Para quem não se lembra, o Palmeiras daquele tempo, também comandado por ele, atropelou o que encontrou pela frente, foi quase campeão paulista invicto (sofreu uma só derrota, para o Guarani) e chegou à marca de cem gols em um único torneio. Pintou, bordou e morreu jovem, quando Müller, pivô do time e em sua melhor fase, se transferiu para o São Paulo na metade da temporada - sem disputar a final da Copa do Brasil, na qual o time foi derrotado para o Cruzeiro.
É cedo, ninguém ganhou ou provou nada, mas é difícil não ir na onda de Luxemburgo, principalmente depois dos 4 x 1 sobre o Santos no último fim de semana. Problemas, sorte e erros de arbitragem à parte, o time, assim como o de 96, tinha fama de bater em galinha morta e de que não aguentaria o tranco quando visse equipe grande pela frente; todos diziam que não manteria o ritmo quando enfrentasse um time grande de verdade, e que bater na Ferroviária e Novorizontino, os Mogi Mirim e Marília da época, era missão inglória, mas fácil. Diziam que bater no Corinthians de Edmundo, craque recém-contratado pelo Alvinegro, em quem foi depositada toda a esperança da segunda maior torcida do Brasil para jogar ao lado de Marcelinho, seria bem mais difícil. É o que dizem do encontro marcado com o Corinthians de Ronaldo e Dentinho de hoje.
O Palmeiras de 96 era novo, jovem, com nomes desconhecidos...mas depois dele, todo mundo quis ser o Palmeiras de 96 quando crescesse. Houve, desde então, times bem mais vitoriosos (aquele mal durou um conto de fim de verão), mas nenhum encantou tantos em tão pouco tempo.
Este blog tem como nome "Margem de Erro", e o que se escreve aqui não tem a menor pretensão de se comprovar mais à frente. Vou de braçada na memória, ainda encantada com aquele time de 96, com o risco de errar e me lembrar mal de episódios e situações; mas não vou resistir a fazer a comparação entre o que foi, o que é e o que pode acontecer com esse time que ameaça encantar. Se der com os burros n’água, ainda posso dizer que não sou treinador do time, só um iludido abobalhado com um chutezinho fora da área que acertou o ângulo de um time boliviano. É porque ainda acho que a história se repete, nem sempre como tragédia, quase nunca como farsa. Aos tópicos:
-o goleiro titular daquele tempo, Velloso, tinha um jovem e promissor arqueiro em sua cola no banco de reservas, chamado Marcos. Titular absoluto de hoje, Marcos, assim como Velloso naquela época, teve de deixar a meta por contusão e deu chance para Bruno mostrar serviço debaixo das traves. E Bruno, como Marcos, tem dado conta do recado;
-os zagueiros (Danilo e Mauricio Ramos) são novos, desconhecidos, um deles vindo do Sul (como Sandro Brum), e vieram para se juntar a um defensor experiente e que subia à área e marcava gols com certa frequencia...alguma semelhança entre Edmílson e o Clebão?;
-o lateral-esquerdo é novo, baixinho, negro, dribla pelo meio, cai pela ponta e ainda precisa aprender a cruzar a bola na área. Assim como Junior em 96, Armero chega como titular absoluto na ala, apesar do bom trabalho feito pelo lateral reserva no ano anterior, Wagner - que, assim como Jefferson, fez apenas um, mas importante gol, com a camisa do time;
-o cabeça-de-área de hoje, Pierre, sagrou-se ídolo no ano anterior, não pela técnica, mas pela capacidade de correr, marcar e roubar bola...só que o Amaral, em 96, já tinha vaga cativa na seleção;
-o meia de apoio, recém-contratado, é dado como promessa, foi destaque na equipe antiga, chega à área com facilidade para chutes de longa distância e pode desequilibrar na bola parada. Cleiton Xavier não tem a mesma habilidade, nem é canhoto, como Djalminha, mas assumiu o posto de maestro do time e, como o ex-craque, marcou seu primeiro gol logo em sua primeira partida pela equipe;
-o meia-atacante é jovem, promissor, e quase completo: chuta de longa distancia, com os dois pés; cabeceia bem, tem bom passe, dribla como poucos, mas vem de temporada mediana, sendo criticado por prender demais a bola e demonstrar lentidão e certa preguiça em campo. Mas poucos duvidam que, inteiro e ligado, é a grande estrela da equipe. Rivaldo só deixou de ser o Diego Souza de sua época em 96, quando fez miséria, pintou, bordou e entrou de vez no rol das grandes estrelas do futebol nacional de sua época como líder daquele time;
-o jovem atacante recém-contratado brilhou no Brasileiro do ano anterior vestindo a camisa de um time verde. Chuta com os dois pés, gosta de bater pênalti, faz as vezes de pivô, cabeceia bem e gosta de buscar a bola no meio-de-campo. Assim como Luizão, Keirrison também vestiu a camisa com apenas 20 anos, marcou dois gols logo em seu primeiro jogo e, também com a 9, desponta como favorito a ser artilheiro por onde passa;
-assim como a equipe de 96, o Palmeiras deste ano também tem um meia chamado Marquinhos, que se destacou em um time rubro-negro; é um habilidoso meia-quase-ponta, que chega para ser titular, se machuca, e fica sem lugar entre os 11, ao menos no começo da temporada...só que o Marquinhos de hoje veio do Vitória, e o de ontem, do Flamengo;
-aliás, neste ano o time trouxe duas revelações vindas do Vitória: Willians e o já citado Marquinhos. Em 96, contava com Paulo Isidoro e Alex Alves, também ex-Vitória
-em 96, a torcida adorava quando o Elivelton, 12º jogador do time, entrava em campo. Sempre deixava sua marca. E os olhos da torcida brilham hoje com seu 12º jogador, também artilheiro-quebra-galho, Lenny;
-o mesmo treinador, Luxemburgo, havia assumido o time um ano antes da temporada de 96, com a missão de colocar o time nos trilhos após passagens fracassadas de técnicos que não traduziram bons elencos em títulos (Caio Jr. de ontem, Carlos Alberto Silva de anteontem);
-Galeano, mesmo reserva, tinha a confiança do treinador, assim como Jumar, bombeiro dos pontapés nas horas vagas;
Ok. Falta um Cafu na direita, e um Müller, no auge de sua experiência, no ataque. E Sandro Silva começou bem, mas ainda está longe de ser um Flávio Conceição.
E faltam muitos jogos, muitas coisas, muitos testes.
A comparação pode ser fajuta, esperançosa, talvez embotada por sete boas apresentações. Mas só de lembrar daquele time de 96, dá até vontade de ser palmeirense e gostar de futebol...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"Milk" e a política nossa de cada dia


Os Estados Unidos de Harvey Milk já conheciam os Beatles, os hippies e o LSD. Já era a democracia mais antiga do planeta, um fenômeno de produção industrial, tecnológica e de conhecimento. Um abrigo imenso, e ainda novo, cuja constituição, a primeira e fundadora, garantia havia décadas a liberdade e espaço para tudo e para todos. Mas os Estados Unidos de Harvey Milk era também o país que punha a polícia na rua para bater em nome da ordem; que temia e decretava o fim dos espaços, festas e redutos gays onde quer que fossem instalados. Redutos que, no início dos anos 1970, passam a migrar para a costa oeste americana, seguindo para San Francisco, na Califórnia, para onde homossexuais de todo país se mudaram naquela época em busca de refúgio e liberdade. Refúgio que incomoda, provoca; cria um país dentro de outro país, e que, para os puristas, não deve ser só combatido, mas eliminado.
Mergulhado no livro que simula o relato de um oficial nazista durante a 2ª Guerra, tenho me questionado, nos últimos dias, até que ponto a ameaça de arroubos nacional-socialistas, transcritos na "solução final" contra judeus, ciganos, deficientes e homossexuais, está completamente afastada em nossos dias; e o que chama a atenção em "Milk", do cada vez mais genial Gus Van Sant, é que não estamos na Alemanha dos anos 1930, mas na libertária Califórnia dos 70, bem parecida com a avenida Paulista de nossos dias.
Nessa mesma Califórnia, o alicerce do movimento gay não é só a aceitação, mas a própria sobrevivência humana. É uma Califórnia que também reprime, mas uma Califórnia que permite, em contrapartida, a formação de um germen contido em um movimento de bar, de rua, de bairro, de cidade; para pouco depois se tornar uma questão nacional. Na melhor interpretação que pude conferir até aqui de Sean Penn (esqueça o sujeito da jaqueta, sério, com cara de poucos amigos, como quem acaba de surrar a Madona pela 19ª vez), o ator vive o ativista gay que, brokebackmontainhisticamente, larga sua vida de executivo em Nova Iorque e segue o uivo dos mares do oeste, onde viver com o namorado era aceito em determinadas condições de pressão e temperatura.
Apesar do pano de fundo, o filme é sobretudo político. Milk não é um ativista gay fazendo política, mas um político levando o ativismo para o debate, o espaço público em uma democracia - mal e mal - consolidada. É por esse canal que ele se insere, num plano em busca da hegemonia do campo, como apregoava Antonio Gramsci. É fazendo aliança, agregando apoios, barganhas, destrinchando projetos que, apesar de se tratar de uma questão universal, ganha força por meio de demandas e representações locais. Só assim para se mudar o mundo, a história, e o modo de se ver, agir e sentir, sem a culpa ancorada na velha formação da moral cristã americana.
Mas é por essa mesma via que seres instalados na vida pública tentam viabilizar um projeto segundo o qual homossexuais perderiam parte de seus direitos civis; passariam a ser tratados como doentes. Por esse projeto, professores homossexuais deveriam ser expurgados das escolas, para evitar o "contágio" dos mais novos, em nome da família, amém. Isso no meio dos EUA dos anos 70, os mesmos EUA de Woodstock e Andy Warhol. O argumento deles: "pode se discutir com os homens, mas não com Deus; e o que quer de nós Deus se não a procriação?" Logo, diziam, a homossexualidade é um tiro de escopeta no alicerce familiar.
Do outro lado da batalha, Milk tenta mostrar que, nesse caso, a individualidade, ao lado da moralidade, é o inimigo a ser combatido. Sua luta, como dito, não é pela aceitação nem pelo apoio meramente, mas, como dito, para sua própria sobrevivência. Para isso, não pode falar apenas com a comunidade que diz representar, mas com o mundo. E o mundo, defende ele, precisa saber quem são as vítimas da maior das atrocidades dos nossos tempos. Não é uma comunidade isolada e distante, mas nossos filhos, amigos, irmãos, conhecidos, vizinhos. Daí o seu jargão: "Eu vim recrutar vocês". E a ordem, enfim: "Saiam do armário. Seus pais e amigos precisam saber quem são vocês". A lógica é: "se as pessoas nos amam, nos aceitam; e não aceitariam a violência contra nós. Um voto, nesse caso, passa a ser pelo menos dois". Touche.
Passados mais de 30 anos do início daquele burburinho californiano, é de fato louvável que esse movimento tenha respingado em nosso país, em nossa maior cidade, e em várias partes do planeta; hoje, a Parada Gay é o maior evento cultural paulistano _e está fadado a morrer politicamente quem se opuser à ideia de tratá-la como patrimônio e monumento cultural. De fato, as questões estão colocadas na vida pública, embora certamente mal resolvidas e só parcialmente alcançadas. Aqui e ali, os desmandos, as desautorizações, os assassinatos e perseguições étnicas e culturais sobrevivem. O jogador de futebol não pode se assumir porque há uma faca em seu pescoço, faca colocada pelo presidente do seu clube e até mesmo pelo juiz de sua causa. Assassinatos diários. Declarações lamentáveis a rodo. Motivos de piada e deslegitimação. As lutas contra a união homoafetiva, contra os procedimentos legais _justos, dignos_ os impedimentos às passeatas, as pressões, a violência implícita.
Quando criança, viajava nas minhas férias para uma cidade chamada Ibirá (SP), onde moram até hoje meus tios e avós; lá, minha mãe era atendida numa loja por um rapaz, de seus vinte e poucos anos, gay assumido, em roupas e expressões; enquanto tentava trabalhar, ouvia gritos, piadas e insultos das crianças que saíam da escola rumo às suas casas. Disseram-me, um dia, que o rapaz já não ligava para aquelas manifestações; sua tristeza mesmo era que o irmão, mecânico, não falava com ele, por vergonha, desde que resolvera se assumir.
Em momento emblemático do filme, é Harven Milk quem diz a um rival político, que se tornará o seu algoz fatal, que havia se relacionado com quatro homens durante toda a sua vida; todos eles com tendências suicidas. Num país em que não se tem espaço, aceitação, direito; em que ainda dão voz aos tais representantes da família e da moral, que querem apontar, à força, um único caminho, um único modo de ver, amar e sentir, o melhor caminho de fato seria a morte, não fosse a política (a tão desacreditada política).
Debates, manifestações, projetos de lei, defesa de direitos humanos como pano de fundo. O conflito precede a conquista, tanto no filme como na história real - e nesse ponto o filme de Sant parece ser o mais engajado da sua obra.
Baseado em uma história real, triste e tragicamente real, mostra em detalhes os caminhos para a mudança dos hábitos, para muito além de qualquer revolução: a política nossa de cada dia.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

por onde andava Stephen Fry?





Estava lá. No elevador. O tempo todo. Só o Baleiro, que não tem twitter, não sabia.

minha vida como indigente


Poucas coisas mudaram na minha vida desde outubro de 2000. A conclusão veio num sobressalto, num domingo de manhã, quando, depois de jogar minha bolinha, tomar duas cervejas com meus amigos Reinaldo Haddad (o Turco) e Marcelo Puyol, me dirigi para a portaria do clube para esperar minha carona. Tudo bem que, em outubro de 2000, não bebia, não conhecia os dois amigos citados e ainda era sócio do clube onde pago, todo domingo, para poder entrar e me reunir com amigos e rabiscar algo parecido com o que chamam de futebol. Mas, assim como naquele ano, quando completei 18 anos, e de maneira parecida com os 18 anos anteriores àquela data, tive de me sentar num meio fio de calçada, sob sol escaldante, para esperar meu pai me buscar em frente do clube. Não tinha alma que não passasse por mim e não tivesse vontade de me oferecer uns trocados diante do meu abandono, mas era a forma que eu tinha de evitar algo em torno de duas e horas e meia de caminhada até o lugar onde meus pais moram atualmente, onde fico durante os finais de semana.

Combinei que meu pai me buscaria às 12h, e ele só apareceu cerca de 40 minutos depois. O tédio, o sol, e a cerveja que fermentava em mim, enquanto esperava sozinho a carona, só reforçaram a pergunta que me faço desde o outubro de 2000: 'por que caralhos não resolvi tirar carteira de motorista naquele maldito ano dos meus 18 anos?'.
Na cidade onde me criei, andar de carro é não só necessário, por causa do transporte público precário, como é um atestado de hombridade só concedida a quem tem mais de 20 centímetros de falo. Ter mais de 18 e não saber cantar pneu, ou ter de assobiar para meninas sobre bicicleta ou só com dois pés, é pedir para não ser olhado. Looser total. Naquele ano, pouco antes da fatídica supracitada data, fui levado à minha iniciação automobilística. Conduzido por meu pai, que me levava para os arredores da cidade para aprender a guiar (como ele dizia), resolvi deitar o colete ao chão e pedir água depois da 302.103.506ª bronca tomada quando fazia o carro morrer em uma subida qualquer. Na última delas, deixei o banco de motorista, sentei no do passageiro, virei para meu pai e me calei. Pensava comigo: 'só volto a dirigir quando tiver meu dinheiro para comprar meu carro e minha carteira de motorista. No carro do meu pai não ando nunca mais'.
O dinheiro para a carteira até posso arrumar, mas a compra de um carro ainda está longe de minhas possibilidades, e não sei se por inveja, desolação ou teimosia, até hoje acho a maior das humilhações ter que ganhar carro de presente do papai para poder andar na rua seguro.
Humilhação que me parecia leve enquanto esperava - adivinha! - o papai me buscar na frente do clube, igualzinho como na época quando nem sonhava chegar aos 26, trabalhar, me virar de metrô, ônibus ou o quer que fosse na maior cidade do país.

Em Araraquara, ainda sou o menino que espera a carona; por isso, não tenho muito como contra-argumentar quando alguém brinca com minha namorada dizendo que ela, na verdade, é o homem da relação. Ela dirige, e me leva para lá e para cá (quando não é ela é meu irmão, três anos mais novo, 20 vezes mais esperto, 324 vezes menos orgulhoso que o irmão).

Mas não ter carro já me levou ao ridículo de pedir a ela, em meio a uma discussão mais acalorada: 'pára o carro que eu quero descer'. Por sorte, ela não parou - e por juízo, não ameacei me jogar da janela.
Mas, tirando o dia em que fiquei sozinho esperando por mais de 40 minutos meu pai na frente do clube, não teve dia em que me senti mais cretino na vida do que o dia em que minha namorada e eu entramos nos perréis por conta da clássica peleja 'você não gosta mais de mim'. Mal e porcamente, foi mais ou menos assim:
Ela:
-Estou cansada de não te ver.
Eu:
-Mas a gente passou a manhã inteira juntos.
Ela:
-Mas na SUA casa!
Eu:
-Mas você trouxe sua irmãzinha, a gente brincou com ela e ela gosta de vir aqui.
E ela:
-Porque VOCÊ só vê ela quando EU trago ela até aqui!
E eu:
-Mas eu gosto quando ela vem.
E ela:
-E qual foi a última vez que VOCÊ veio em casa?
E eu:
-Não lembro.
E ela:
-Tá vendo. Você não gosta mais de mim!
E eu:
-Eu gosto. (e, engasgado). É que eu não tenho carro pra poder te ver, puxa!
Eu falo. Bater em alguém que não tirou carta de motorista é como bater em alguém com óculos, dor de garganta e sofrendo de indisposição erétil. Foi humilhante, mas ganhei a peleja e a pena dela. Dela e do restante da humanidade, acostumada mais a me visitar do que ser visitada.
Sem minha carteira de habilitação, que há quase nove anos deixo para tirar só no ano que vem, tenho a mais pura sensação de que um dia ainda vou ser enterrado, a pé, como um triste e esquecido indigente.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

tempo perdido


Alguém ouvia Legião Urbana no ônibus. Vinha de algum fone, mal ajustado, ou propositalmente colocado em som ambiente. Não me irritou. Diferentemente de outros dias, não queria levar os 30 minutos de viagem até o caminho com o livro que me tem tomado parte dos dias, "As Benevolentes". Sentei-me, com os olhos presos na janela, disposto apenas a testemunhar o que o mundo me oferecia do lado de fora de meu percurso. E foi com os olhos presos na janela que pude ver a movimentação de policiais e guardas da CET, logo no ponto seguinte. Com os olhos presos na janela, pude ver que alguém havia se acidentado minutos antes. Com os olhos presos na janela - àquela altura um espaço compartilhado por outros passageiros, de pé, vendo o que acontecia - pude ver um homem com seus 40 e poucos anos, as pernas esticadas, cruzadas uma na outra, uma sandalha parca e suja. Deitado no chão, uma garrafa de água vazia na boca, os botões da camisa abertos, o peito massageado, em vão. Vi-o com os olhos fechados, a barba por fazer; a boca envolta de um sangue preso, quase preto; um fio vermelho escorrendo pelo canto. Com os olhos presos na janela, vi um motorista de caminhão, atônito, chamando pelo resgate; as mãos trêmulas, a todo instante levadas à cabeça, como quem se pergunta o que acabava de fazer. Num instante, visto numa fresta de janela, assisti, pela manhã, alguém morrer com as costas imundas no chão, enquanto os carros se entupiam logo atrás, buzinavam. De dentro, bem naquela hora, a voz que vinha do MP3 de algum passageiro parecia ganhar dimensão, em tom e sentido. O homem não respondia aos esforços e massagens em seu peito, e a música parecia feita para a ocasião. Alguém dizia não ter medo do escuro, mas pedia as luzes acesas agora. E o homem seguia sem emitir sinais de vida, enquanto alguém lembrava que o que havia sido prometido, ninguém prometera; numa manhã cinza como esta manhã, uma tempestade chegando, da cor de olhos castanhos de alguém que já não os abria. Pensei que, naquele instante, ele já estaria em coro, rebelde, inconsciente, lembrando que, sim, também era tão jovem. Muito jovem. Mas que não foi tempo perdido. E eu, na minha fresta de janela de um ônibus parado, só, enquanto o sinal não se abria, me perguntava quantos planos aquele homem acabava de interromper naquele instante. Pouco depois, pensei, alguém receberia a notícia. E como a receberia? Com que intenção ele saíra de casa, e quais eram os planos dele para logo mais, à noite, quando o dia acabasse? Teria ele vibrado com algum gol no fim de semana? Que desejo ou resolução teria planejado na última festa de fim de ano? Deixou alguma rusga com alguém, antes de se deitar - e dessa vez se deitar ao chão? Alguma garrafa de uísque, para bebemorar alguma conquista quando alguma coisa de tudo se acabasse? E como planejava morrer? Que música gostaria de ouvir, e em qual entonação? Qual seu pedido e qual sua queixa? O que diria para aquele que decidira seu rumo, numa fração de existência? Diria que era jovem? Que não tinha medo do escuro? Estava no escuro ou via luzes? Via que alguém tentava, sem desespero, uma salvação inútil? A quem pediria um abraço forte? Alguém para dizer que já estava distante de tudo, dentro de seu próprio tempo. Seu próprio tempo. Era o que ele parecia cantar, naquela música que embalava o ambiente, enquanto todos o viam intacto em sua - agora - imprecisão. Hoje, quando chegar em casa, vou ouvir alto essa música e lembrar desse amigo que não cheguei a conhecer. Ao pedir o nosso próprio tempo, vou direcionar a ele a única oração que poderia rabiscar em uma nuvem, num dia cinza como olhos castanhos, em uma casa, como todas as casas, com todas as suas luzes acesas. Acesas agora.