segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

tempo perdido


Alguém ouvia Legião Urbana no ônibus. Vinha de algum fone, mal ajustado, ou propositalmente colocado em som ambiente. Não me irritou. Diferentemente de outros dias, não queria levar os 30 minutos de viagem até o caminho com o livro que me tem tomado parte dos dias, "As Benevolentes". Sentei-me, com os olhos presos na janela, disposto apenas a testemunhar o que o mundo me oferecia do lado de fora de meu percurso. E foi com os olhos presos na janela que pude ver a movimentação de policiais e guardas da CET, logo no ponto seguinte. Com os olhos presos na janela, pude ver que alguém havia se acidentado minutos antes. Com os olhos presos na janela - àquela altura um espaço compartilhado por outros passageiros, de pé, vendo o que acontecia - pude ver um homem com seus 40 e poucos anos, as pernas esticadas, cruzadas uma na outra, uma sandalha parca e suja. Deitado no chão, uma garrafa de água vazia na boca, os botões da camisa abertos, o peito massageado, em vão. Vi-o com os olhos fechados, a barba por fazer; a boca envolta de um sangue preso, quase preto; um fio vermelho escorrendo pelo canto. Com os olhos presos na janela, vi um motorista de caminhão, atônito, chamando pelo resgate; as mãos trêmulas, a todo instante levadas à cabeça, como quem se pergunta o que acabava de fazer. Num instante, visto numa fresta de janela, assisti, pela manhã, alguém morrer com as costas imundas no chão, enquanto os carros se entupiam logo atrás, buzinavam. De dentro, bem naquela hora, a voz que vinha do MP3 de algum passageiro parecia ganhar dimensão, em tom e sentido. O homem não respondia aos esforços e massagens em seu peito, e a música parecia feita para a ocasião. Alguém dizia não ter medo do escuro, mas pedia as luzes acesas agora. E o homem seguia sem emitir sinais de vida, enquanto alguém lembrava que o que havia sido prometido, ninguém prometera; numa manhã cinza como esta manhã, uma tempestade chegando, da cor de olhos castanhos de alguém que já não os abria. Pensei que, naquele instante, ele já estaria em coro, rebelde, inconsciente, lembrando que, sim, também era tão jovem. Muito jovem. Mas que não foi tempo perdido. E eu, na minha fresta de janela de um ônibus parado, só, enquanto o sinal não se abria, me perguntava quantos planos aquele homem acabava de interromper naquele instante. Pouco depois, pensei, alguém receberia a notícia. E como a receberia? Com que intenção ele saíra de casa, e quais eram os planos dele para logo mais, à noite, quando o dia acabasse? Teria ele vibrado com algum gol no fim de semana? Que desejo ou resolução teria planejado na última festa de fim de ano? Deixou alguma rusga com alguém, antes de se deitar - e dessa vez se deitar ao chão? Alguma garrafa de uísque, para bebemorar alguma conquista quando alguma coisa de tudo se acabasse? E como planejava morrer? Que música gostaria de ouvir, e em qual entonação? Qual seu pedido e qual sua queixa? O que diria para aquele que decidira seu rumo, numa fração de existência? Diria que era jovem? Que não tinha medo do escuro? Estava no escuro ou via luzes? Via que alguém tentava, sem desespero, uma salvação inútil? A quem pediria um abraço forte? Alguém para dizer que já estava distante de tudo, dentro de seu próprio tempo. Seu próprio tempo. Era o que ele parecia cantar, naquela música que embalava o ambiente, enquanto todos o viam intacto em sua - agora - imprecisão. Hoje, quando chegar em casa, vou ouvir alto essa música e lembrar desse amigo que não cheguei a conhecer. Ao pedir o nosso próprio tempo, vou direcionar a ele a única oração que poderia rabiscar em uma nuvem, num dia cinza como olhos castanhos, em uma casa, como todas as casas, com todas as suas luzes acesas. Acesas agora.

2 comentários:

Cris disse...

E é a música no fone de ouvido que deu o tom da sutileza.

Engraçado como a vida é cheia dessas pequenas ironias, dessas pequenas coisas que a ajudam a se compor.

Não bastou o homem ter morrido, nem seus olhos grudados na janela terem presenciado isso: tinha que ter trilha sonora condizente.

Poderia até ser um tchá-tchá-tchá; nessas horas a música - qualquer música - ganha um sentido especial e sobrenatural.

A morte me entristece e também me faz pensar em tudo isso sobre a identidade, cheia de pensamentos e suor e perspectivas próprias, embora anônima.

Não consigo, por exemplo, ler uma notícia sobre mendigo incediado na rua por um bando de playboys maníacos e não pensar em tudo o que ele deve ter sentido e vivido na vida, impresssa em suas rugas, ou mesmo em sua juventude.

Felizmente, desta vez, o mendigo mineiro sobreviveu pra contar...

Pontal Caraguá disse...

Desculpe-me a curiosidade mórbida, mas o homem era motoqueiro ou um pedestre comum? Não sei porquê, mas ao ler notícias ou presenciar acidentes envolvendo motoqueiros, não consigo ver no fato uma simples fatalidade. Eles estavam ali para serem mortos, porque queremos a entrega rápida e admitimos os eventuais inconvenientes da pressa. Também porque não dispensamos a mínima oportunidade para botar o pé no acelerador e ganhar tempo, chegar uns minutos adiantado no trabalho. A morte é sempre dolorosa, principalmente quando é alguém próximo. Um amigo de fato, não um rosto desconhecido. Mas a que poderia ser evitada sem uma sensação diferente. Misto de asco com resignação. A vida tem dessas coisas. A morte sempre vem...