sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

"Milk" e a política nossa de cada dia


Os Estados Unidos de Harvey Milk já conheciam os Beatles, os hippies e o LSD. Já era a democracia mais antiga do planeta, um fenômeno de produção industrial, tecnológica e de conhecimento. Um abrigo imenso, e ainda novo, cuja constituição, a primeira e fundadora, garantia havia décadas a liberdade e espaço para tudo e para todos. Mas os Estados Unidos de Harvey Milk era também o país que punha a polícia na rua para bater em nome da ordem; que temia e decretava o fim dos espaços, festas e redutos gays onde quer que fossem instalados. Redutos que, no início dos anos 1970, passam a migrar para a costa oeste americana, seguindo para San Francisco, na Califórnia, para onde homossexuais de todo país se mudaram naquela época em busca de refúgio e liberdade. Refúgio que incomoda, provoca; cria um país dentro de outro país, e que, para os puristas, não deve ser só combatido, mas eliminado.
Mergulhado no livro que simula o relato de um oficial nazista durante a 2ª Guerra, tenho me questionado, nos últimos dias, até que ponto a ameaça de arroubos nacional-socialistas, transcritos na "solução final" contra judeus, ciganos, deficientes e homossexuais, está completamente afastada em nossos dias; e o que chama a atenção em "Milk", do cada vez mais genial Gus Van Sant, é que não estamos na Alemanha dos anos 1930, mas na libertária Califórnia dos 70, bem parecida com a avenida Paulista de nossos dias.
Nessa mesma Califórnia, o alicerce do movimento gay não é só a aceitação, mas a própria sobrevivência humana. É uma Califórnia que também reprime, mas uma Califórnia que permite, em contrapartida, a formação de um germen contido em um movimento de bar, de rua, de bairro, de cidade; para pouco depois se tornar uma questão nacional. Na melhor interpretação que pude conferir até aqui de Sean Penn (esqueça o sujeito da jaqueta, sério, com cara de poucos amigos, como quem acaba de surrar a Madona pela 19ª vez), o ator vive o ativista gay que, brokebackmontainhisticamente, larga sua vida de executivo em Nova Iorque e segue o uivo dos mares do oeste, onde viver com o namorado era aceito em determinadas condições de pressão e temperatura.
Apesar do pano de fundo, o filme é sobretudo político. Milk não é um ativista gay fazendo política, mas um político levando o ativismo para o debate, o espaço público em uma democracia - mal e mal - consolidada. É por esse canal que ele se insere, num plano em busca da hegemonia do campo, como apregoava Antonio Gramsci. É fazendo aliança, agregando apoios, barganhas, destrinchando projetos que, apesar de se tratar de uma questão universal, ganha força por meio de demandas e representações locais. Só assim para se mudar o mundo, a história, e o modo de se ver, agir e sentir, sem a culpa ancorada na velha formação da moral cristã americana.
Mas é por essa mesma via que seres instalados na vida pública tentam viabilizar um projeto segundo o qual homossexuais perderiam parte de seus direitos civis; passariam a ser tratados como doentes. Por esse projeto, professores homossexuais deveriam ser expurgados das escolas, para evitar o "contágio" dos mais novos, em nome da família, amém. Isso no meio dos EUA dos anos 70, os mesmos EUA de Woodstock e Andy Warhol. O argumento deles: "pode se discutir com os homens, mas não com Deus; e o que quer de nós Deus se não a procriação?" Logo, diziam, a homossexualidade é um tiro de escopeta no alicerce familiar.
Do outro lado da batalha, Milk tenta mostrar que, nesse caso, a individualidade, ao lado da moralidade, é o inimigo a ser combatido. Sua luta, como dito, não é pela aceitação nem pelo apoio meramente, mas, como dito, para sua própria sobrevivência. Para isso, não pode falar apenas com a comunidade que diz representar, mas com o mundo. E o mundo, defende ele, precisa saber quem são as vítimas da maior das atrocidades dos nossos tempos. Não é uma comunidade isolada e distante, mas nossos filhos, amigos, irmãos, conhecidos, vizinhos. Daí o seu jargão: "Eu vim recrutar vocês". E a ordem, enfim: "Saiam do armário. Seus pais e amigos precisam saber quem são vocês". A lógica é: "se as pessoas nos amam, nos aceitam; e não aceitariam a violência contra nós. Um voto, nesse caso, passa a ser pelo menos dois". Touche.
Passados mais de 30 anos do início daquele burburinho californiano, é de fato louvável que esse movimento tenha respingado em nosso país, em nossa maior cidade, e em várias partes do planeta; hoje, a Parada Gay é o maior evento cultural paulistano _e está fadado a morrer politicamente quem se opuser à ideia de tratá-la como patrimônio e monumento cultural. De fato, as questões estão colocadas na vida pública, embora certamente mal resolvidas e só parcialmente alcançadas. Aqui e ali, os desmandos, as desautorizações, os assassinatos e perseguições étnicas e culturais sobrevivem. O jogador de futebol não pode se assumir porque há uma faca em seu pescoço, faca colocada pelo presidente do seu clube e até mesmo pelo juiz de sua causa. Assassinatos diários. Declarações lamentáveis a rodo. Motivos de piada e deslegitimação. As lutas contra a união homoafetiva, contra os procedimentos legais _justos, dignos_ os impedimentos às passeatas, as pressões, a violência implícita.
Quando criança, viajava nas minhas férias para uma cidade chamada Ibirá (SP), onde moram até hoje meus tios e avós; lá, minha mãe era atendida numa loja por um rapaz, de seus vinte e poucos anos, gay assumido, em roupas e expressões; enquanto tentava trabalhar, ouvia gritos, piadas e insultos das crianças que saíam da escola rumo às suas casas. Disseram-me, um dia, que o rapaz já não ligava para aquelas manifestações; sua tristeza mesmo era que o irmão, mecânico, não falava com ele, por vergonha, desde que resolvera se assumir.
Em momento emblemático do filme, é Harven Milk quem diz a um rival político, que se tornará o seu algoz fatal, que havia se relacionado com quatro homens durante toda a sua vida; todos eles com tendências suicidas. Num país em que não se tem espaço, aceitação, direito; em que ainda dão voz aos tais representantes da família e da moral, que querem apontar, à força, um único caminho, um único modo de ver, amar e sentir, o melhor caminho de fato seria a morte, não fosse a política (a tão desacreditada política).
Debates, manifestações, projetos de lei, defesa de direitos humanos como pano de fundo. O conflito precede a conquista, tanto no filme como na história real - e nesse ponto o filme de Sant parece ser o mais engajado da sua obra.
Baseado em uma história real, triste e tragicamente real, mostra em detalhes os caminhos para a mudança dos hábitos, para muito além de qualquer revolução: a política nossa de cada dia.

4 comentários:

Gisele Buendía disse...

Você acreditaria se eu dissesse que conheci um engenheiro americano que chegou a ser mendigo em Cincinnati (OH) após ter sua casa queimada por ser gay? E que esse mesmo engenheiro teria que se separar do namorado, um imigrante ilegal, porque o casamento gay não é legalizado e o cara não conseguia visto?

Cris disse...

A política nossa de cada dia que colocou um negro na presidência dos EUA não tantos anos depois de bluesmen entoarem letras tristes, entrecortadas por gemidos de gaita, enquanto trabalhavam na colheita do algodão, no sul racista dos mesmos EUA.

E que agora põe uma lésbica assumida na liderança islandesa.

A política é lenta, o poder é ambíguo, mas as coisas tendem, sempre, a mudar para melhor – tenho certeza disso. E graças às pequenas revoluções.

Graciliano disse...

São importantes os filmes que exponham a grande e conservadora associação de pais e mestres que são os Estados Unidos (mesmo a libertária Califórnia dos 70). Importantes no sentido de repetir o mantra da obviedade sobre o longo caminho que falta percorrer até que os direitos sejam reconhecidos igualmente para todas as pessoas.
Talvez eu esteja demodé, mas ainda acredito que a única forma de conseguir alguma coisa é na luta política. O resto cheira a balela. Bom post.

Anônimo disse...

Amigo, como é importante socializar tudo! Larguemos essa nossa individualidade mofada e compartilhemos tudo o que acreditamos. Parabéns por socializar conosco esse roteiro instigante.