domingo, 15 de fevereiro de 2009

desapaixone-se


Com uma toalha segurando os cabelos e os pés apoiados na janela, Holly (Audrey Hepburn) rabisca algumas notas no violão enquanto Paul (George Peppard), postado num andar superior do mesmo prédio, a observa sem piscar. A música, “Moon River”, progride e a cada acorde a câmera se aproxima dela, até ser focada de vez em seu rosto. Justamente no trecho que diz: “There’s such a lot of world to see”. Paul está apaixonado. Todos estamos.
Só não sabemos qual parte do mundo coube aos dois ao fim de “Bonequinha de Luxo”.
Nem podemos imaginar que fim teriam Jack e Rose se o personagem interpretado por Leonardo DiCaprio não tivesse escorregado daquele bloco de gelo, soltando para sempre as mãos de Rose (Kate Winslet). A distância num caso e a morte, no outro, mantiveram conservados para sempre os suspiros de amores contraditos dos principiantes.
Mesma sorte não tiveram Frank e April, vividos pelos mesmíssmos DiCaprio e Winslet no novo filme de Sam Mendes, baseado no romance de Richard Yates, “Revolutionary Road”, toscamente traduzido no Brasil como “Foi Apenas um Sonho”.
Sorte que parecia consumada, pois aquele mesmo “tanto mundo” cantado por Hepburn estava disponível ao jovem e belo casal nos Estados Unidos do pós-guerra. Tinham a vida e o mundo pela frente, algumas sobras de suspiros, uma beleza ainda intacta, dois belos filhos, além de uma linda casa branca – com varanda, um quintal e várias janelas para ver o sol nascer, como na música. Sol que está presente o tempo todo durante o filme, iluminando cada canto de uma casa típica da família doriana. Aquela vida branca, clara e bela, é um inferno. Ele é chucro e, para ela, um sujeito covarde, pouco interessante e incapaz de aceitar mudanças; ela, sonhadora, é uma atriz frustrada, sem talento para o palco ou para mãe e dona do lar. Os personagens são personagens desencontrados, num palco para eles desconhecido, interpretando uma peça que desprezam.
Nas mais de duas horas de filme, o que se vê é a tensão existente entre dois jovens que veem o mundo cantado por Hepburn se perder das mãos. Descobrem que aquela vida é uma farsa encenada para agradar os pais e os vizinhos solícitos e aparentemente felizes, com quem mantêm conversas bestas sobre assuntos detestáveis. Ambos parecem não só terem notado viverem uma alegria falsa; notam, sobretudo, que a felicidade não existe em meio àquele “vazio sem esperança”, branco como o branco, a mistura de todas as cores fundidas e...invisíveis.
Esse vazio é apontado pelo único personagem que tem coragem de enlouquecer e assumir que enlouqueceu – o filho de uns vizinhos, recém-saído do hospício. Detestável, como a verdade.
Assim como em “Beleza Americana”, do mesmo diretor, esse “vazio sem esperança” do modo de vida que escolhemos é também posto em xeque. A pergunta: o que fazer depois do triunfo?
Na vida, somos treinados o tempo todo para os grandes momentos, e não os pequenos. Ouvimos histórias sobre triunfos da coragem, sobre a necessidade de sermos homens, realizados, alegres, dispostos, honestos, trabalhadores; bons amantes, bons pais, bons vizinhos. Somos criados para vencer, superar a escola, a carreira.
Mas o filme parece dizer que nem sempre temos vocação para esse mundo que nos é imposto como um desafio; porque sabemos atravessar desertos, mas não sabemos como agir após a travessia.
Ao notar que a alegria e a paz prometidas para após o desafio – juntar os trapos, ter uma casa e os filhos – April e Frank são incitados agora não apenas pelo tédio, mas pela própria noção de incapacidade. Essa incapacidade, representada no filme como a ausência de talento e sensibilidade que angustia o mesmo casal, sem esperanças se não à de fugir para outro mundo (Paris?). É justamente o que os leva à destruição.
Em momento-chave, Frank, que já lutara na guerra, confessa, bêbado, que sentia falta das frentes de batalha, dos conflitos, da guerra, e até de sentir medo. Porque, diante do perigo, sentia o sangue correr pelas veias. Sabia que estava vivo.
Mas os tempos, Frank, agora são de paz, e mesmo sendo treinados para sermos heróis, temos que nos acostumar com os esforços para nos contentar com as comodidades da geladeira. Ou do quintal. Ou da casa branca de madeira nobre. Ou da competiçãozinha fétida com o vizinho de grama mais verde ao lado. Das escapadas num sábado à noite. Dos olhares da colega de trabalho. Da promoção no trabalho que nos esmaga. Da praia, suja e lotada no fim de semana. Da embriaguez. Das conversas tontas de quem sonha apenas em levantar, cumprir o que nos foi determinado, dormir, e esperar morrer. Enquanto a TV nos distrai.
Em “As Benevolentes”, Max Aue, o agente da SS que narra sua versão da segunda guerra, afirma que a vida parece ser feita por quem já descobriu que ela é uma farsa, e, cinicamente, não se importa com isso; por quem ainda não descobriu que é uma farsa, e se aliena nas pequenas e pueris alegrias; e por quem, como Jack e April, já sacou que o tédio triunfa, mas sofre com isso e busca respostas.
E por sofrerem, e por sermos criados para vencer, lutar, e ir à frente, é que, sem objetivos, nos distraímos, como Jack e April, com os passatempos favoritos da nossa geração: destruir quem está ao nosso lado.
Em minha vida, cansei de ver meus tios, casais de amigos, pais de amigos e até meus próprios pais se humilharem, entre eles mesmos, ou diante do mundo, para saber quem pode mais. Como se o sonho de ser tornar astronauta tivesse sido abortado em nome de um dever que nos foi delegado: cuidar dos filhos, da casa, do sustento. Sabem que, fora a casa, não foram capazes de construir nada, absolutamente nada, juntos. Capazes foram somente de cuspir méritos, à espera de um reconhecimento que não virá, e minar o que o outro tem de melhor, com o intuito de não o perder para o resto do mundo.
Ganância, ciúmes, cobranças; indiferença, desencanto, desprezo. A alegria de desautorizar e se vingar por aquela viagem negada naquele verão. Ou porque as coisas, ao lado de mais alguém, jamais vão sair exatamente como imaginamos no começo.
Pois é. O filme é uma patada no estomago, e saí dele direto para o bar, para murmurar sozinho. Meu estomago ainda doía. Diante do argumento exposto a mim naquele filme: sim, sabemos vencer o inimigo, mas não nos comportar em tempos de paz.
Por isso, seguimos guerreando, pois se por um lado não há mais causas, por outro, as armas ainda existem e estão ao alcance. São usadas para nosso esporte favorito: enlouquecer e levar à loucura não o inimigo, mas aqueles que aceitaram viver perto de nós. Supostamente para toda a vida.

3 comentários:

Flávia disse...

ai minhas costas... fui arrebatada por suas palavras de tal forma que perdi os sentidos e não percebi que estava toda torta aqui (rs). duras verdades em forma de "poesia". triste, mas muito bonito, moço.

Cris disse...

Este filme também não vi ainda e, cinéfila exagerada, sempre tenho medo que os críticos deixem alguma surpresa escapar em sua resenha. (Mesmo aquelas surpresas que não sabem ser surpreendentes, mas que gosto de saborear mesmo, igual bala de hortelã depois do almoço ;)

Mas prometo voltar quando tiver assistido e fazer um comentário decente.

bjs

P.S. Aguardo o post sobre carnaval =P

Anônimo disse...

Ele desistiu do blog