quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

minha vida como indigente


Poucas coisas mudaram na minha vida desde outubro de 2000. A conclusão veio num sobressalto, num domingo de manhã, quando, depois de jogar minha bolinha, tomar duas cervejas com meus amigos Reinaldo Haddad (o Turco) e Marcelo Puyol, me dirigi para a portaria do clube para esperar minha carona. Tudo bem que, em outubro de 2000, não bebia, não conhecia os dois amigos citados e ainda era sócio do clube onde pago, todo domingo, para poder entrar e me reunir com amigos e rabiscar algo parecido com o que chamam de futebol. Mas, assim como naquele ano, quando completei 18 anos, e de maneira parecida com os 18 anos anteriores àquela data, tive de me sentar num meio fio de calçada, sob sol escaldante, para esperar meu pai me buscar em frente do clube. Não tinha alma que não passasse por mim e não tivesse vontade de me oferecer uns trocados diante do meu abandono, mas era a forma que eu tinha de evitar algo em torno de duas e horas e meia de caminhada até o lugar onde meus pais moram atualmente, onde fico durante os finais de semana.

Combinei que meu pai me buscaria às 12h, e ele só apareceu cerca de 40 minutos depois. O tédio, o sol, e a cerveja que fermentava em mim, enquanto esperava sozinho a carona, só reforçaram a pergunta que me faço desde o outubro de 2000: 'por que caralhos não resolvi tirar carteira de motorista naquele maldito ano dos meus 18 anos?'.
Na cidade onde me criei, andar de carro é não só necessário, por causa do transporte público precário, como é um atestado de hombridade só concedida a quem tem mais de 20 centímetros de falo. Ter mais de 18 e não saber cantar pneu, ou ter de assobiar para meninas sobre bicicleta ou só com dois pés, é pedir para não ser olhado. Looser total. Naquele ano, pouco antes da fatídica supracitada data, fui levado à minha iniciação automobilística. Conduzido por meu pai, que me levava para os arredores da cidade para aprender a guiar (como ele dizia), resolvi deitar o colete ao chão e pedir água depois da 302.103.506ª bronca tomada quando fazia o carro morrer em uma subida qualquer. Na última delas, deixei o banco de motorista, sentei no do passageiro, virei para meu pai e me calei. Pensava comigo: 'só volto a dirigir quando tiver meu dinheiro para comprar meu carro e minha carteira de motorista. No carro do meu pai não ando nunca mais'.
O dinheiro para a carteira até posso arrumar, mas a compra de um carro ainda está longe de minhas possibilidades, e não sei se por inveja, desolação ou teimosia, até hoje acho a maior das humilhações ter que ganhar carro de presente do papai para poder andar na rua seguro.
Humilhação que me parecia leve enquanto esperava - adivinha! - o papai me buscar na frente do clube, igualzinho como na época quando nem sonhava chegar aos 26, trabalhar, me virar de metrô, ônibus ou o quer que fosse na maior cidade do país.

Em Araraquara, ainda sou o menino que espera a carona; por isso, não tenho muito como contra-argumentar quando alguém brinca com minha namorada dizendo que ela, na verdade, é o homem da relação. Ela dirige, e me leva para lá e para cá (quando não é ela é meu irmão, três anos mais novo, 20 vezes mais esperto, 324 vezes menos orgulhoso que o irmão).

Mas não ter carro já me levou ao ridículo de pedir a ela, em meio a uma discussão mais acalorada: 'pára o carro que eu quero descer'. Por sorte, ela não parou - e por juízo, não ameacei me jogar da janela.
Mas, tirando o dia em que fiquei sozinho esperando por mais de 40 minutos meu pai na frente do clube, não teve dia em que me senti mais cretino na vida do que o dia em que minha namorada e eu entramos nos perréis por conta da clássica peleja 'você não gosta mais de mim'. Mal e porcamente, foi mais ou menos assim:
Ela:
-Estou cansada de não te ver.
Eu:
-Mas a gente passou a manhã inteira juntos.
Ela:
-Mas na SUA casa!
Eu:
-Mas você trouxe sua irmãzinha, a gente brincou com ela e ela gosta de vir aqui.
E ela:
-Porque VOCÊ só vê ela quando EU trago ela até aqui!
E eu:
-Mas eu gosto quando ela vem.
E ela:
-E qual foi a última vez que VOCÊ veio em casa?
E eu:
-Não lembro.
E ela:
-Tá vendo. Você não gosta mais de mim!
E eu:
-Eu gosto. (e, engasgado). É que eu não tenho carro pra poder te ver, puxa!
Eu falo. Bater em alguém que não tirou carta de motorista é como bater em alguém com óculos, dor de garganta e sofrendo de indisposição erétil. Foi humilhante, mas ganhei a peleja e a pena dela. Dela e do restante da humanidade, acostumada mais a me visitar do que ser visitada.
Sem minha carteira de habilitação, que há quase nove anos deixo para tirar só no ano que vem, tenho a mais pura sensação de que um dia ainda vou ser enterrado, a pé, como um triste e esquecido indigente.

2 comentários:

Cris disse...

Putz, tanta coisa me ocorreu pra comentar durante a leitura que tive que abrir uma janelinha à parte para os comentários. Bora lá:

1- Muitas coisas mudaram na minha vida desde 2000: deixei de ser nadadora, morei fora de casa e do país, namorei, desnamorei, comecei a trabalhar em banco, fiz a facul, e, no último ano, mudei de cidade, de casa e de profissão. Sem contar, é claro, que banquei minha carteira de motorista para poder...

2- ...dirigir...! Uma das melhores coisas do mundo!! Depois de alguns prazeres óbvios, está no topo de muitos prazeres. Uma das coisas mais gostosas do mundo é a sensação de liberdade de pegar seu carro, entrar numa (rara) estrada bem-cuidada, ligar o som e abrir as janelas todas no vento da alta velocidade. Bem 'Born to be wild' mesmo.

3- Pra ter esse prazer todo, usei meus primeiros salários só para pagar a auto-escola, os caríssimos exames do Detran e dar entrada no meu carro, que quitei um ano e meio depois.

4- Pra te consolar, antes de ter carro eu era a maior caroneira do universo. Todos os pais dos meus amigos me conheciam, porque sempre davam carona pra mim. Acabei retribuindo nos últimos anos, mas aqui em SP voltei a precisar da boa-vontade alheia...

5- E teve um dia, quando eu tinha uns 7 anos, que meu pai se esqueceu de me buscar na escola. Eu estudava até as 17h. Fiquei no portãozão com os coleguinhas até umas 17h30, esperando. Passava o pai de um, do outro, do outro... 50 crianças se transformaram em cinco retardatários comigo. O portãozão fechou e tivemos que esperar no portãozinho dos fundos. Um a um os quatro coleguinhas também se foram. Fiquei sozinha, já estava anoitecendo, e comecei a chorar. Uma pedestre que passava me viu, pediu o tel do meu pai e ligou bravíssima para ele, que chegou assustado alguns minutos depois. Estava tão concentrado em alguma pauta, que se esqueceu da vida... Jornal faz isso com as pessoas, I suppose.

6- "Pára o carro que eu quero descer" foi foda, hein. Taí um bom motivo pra criar vergonha na cara e aproveitar as próximas férias pra tirar logo essa CNH ("carta", pros paulistas...).

=)

Lenita Minella disse...

já passou da hora hein...
do jeito q vai já me imagino com 20 kilos de barriga, placenta escorrendo e tento q esperar no ponto de ônibus pra ir ao hospital dar a luz!