terça-feira, 2 de dezembro de 2008

ainda Araraquara


A primeira imagem que guardo na lembrança é a de um menino assustado, cercado por pai, mãe e tia/madrinha e sendo forçado a posar para uma foto que se negava a tirar. Levava na cabeça um chapéu de marinheiro; a aba dobrada deixava somente o selo da loja – azul – transparecer. Em volta, alguns cabelos querendo ganhar a vida afora, bem como a minha vontade de saltar daquela fonte circular, onde jorravam tédio e água mineral. Salvo o chapéu, todo o resto de meu corpo estava descoberto. Como quando vim ao mundo. A água que saía da fonte gelava meus pés e tornava aquela situação incômoda. Levava comigo uma pá de plástico, que somava um conjunto com um rastelinho e uma bola amarela. Eram as únicas armas que levava em mãos para dar na cabeça de quem me vinha afagar as faces, apertar as bochechas e inundá-las com saliva de beijos amargos.
Anos mais tarde, ao olhar a foto do menino assustado contando nem bem um ano e meio, soube que a fonte ainda existia. Foi durante muito tempo o cartão de visitas da pequena Thermas de Ibirá, cidadezinha do interior de São Paulo, onde vivem hoje meus avós e tios. É para onde viajo quando sinto que a fumaça e barulho de São Paulo tentam tirar de mim o homem que sou. Ainda hoje, se estiver sentado no sofá de minha casa na capital e me pego para ver, ler ou ouvir algo, inicio um exercício cruel de me manter exatamente onde estou – cumprindo assim com as obrigações que me prendem no mesmo local, no dia seguinte de manhã. E me transporto para onde meus olhos sinceramente gostariam de pousar.
Num conflito sobre a ambivalência perímetro urbano/limite rural, emendo o golpe de Minerva quando retorno às sextas-feiras para minha cidade natal, Araraquara. Ali encontro o equilíbrio entre as vocações que me afligem. De um lado, respirando um pouco da fumaça que cospem os carros da Rua 2, numa realidade enriquecida pelo ritmo. Em Araraquara posso me exilar por instantes do planeta das horas marcadas. Araraquara é o único ponto do globo em que posso deitar-me tranqüilo, um visitante já sem casa. Em São Paulo, barulho e ritmo que levam a pensar que falta algo. Sempre. Em Thermas de Ibirá, o ponto oposto da corda, já não sou peça da engrenagem. Paciência: pois se Salomão encontrou sabiamente o meio termo no coração de duas mães, quanto menos custoso foi achar refúgio para esta alma de uma mãe só. Ao menos há nisso algo que, enfim, eu possa fazer inveja a Manuel Bandeira: minha Pasargada não precisei criar. Ela já existia bem antes de mim. E segue imponente no mesmo lugar – onde há de ficar quando meu tempo também passar.

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